Todo o mundo sabia que a mulher do Ferreira o enganava, mas o Ferreira continuava lhe fazendo poemas. Onze anos de casados e ele ainda cantava a mulher em versos. Versos ruins, 'amor' rimando com 'flor' e 'paixão' com 'coração', mas versos. Que lia para a roda do chope antes de entregar à mulher, às vezes acompanhados de uma rosa. A infiel se chamava Rosa.
"Tua beleza é um dom divino
Ao qual faço este hino"
Ou:
"És formosa, sedosa, cheirosa,
Garbosa, mimosa, vistosa,
Voluptuosa, maravilhosa...
Enfim, és Rosa!"
Depois de ler um dos seus versos, o Ferreira olhava em volta da mesa e perguntava:
- Hem? Hem?
Os amigos se entreolhavam e sorriam.
- Boa, Ferreirão.
Gostavam do Ferreira. Era uma boa alma. O que não impediu que lhe dessem um apelido, sem ele saber: Corno Lírico.
Ninguém sabia como a Rosa recebia os poemas que o Ferreira lhe entregava, às vezes com uma rosa.
Beijava o Ferreira e dizia coisas como "Você é mesmo um doce", ou jogava o poema e a rosa no lixo, já que não podia jogar o Ferreira? O amante actual da Rosa, sabiam todos menos o Ferreira, era um fiscal da Receita chamado Rubival. Os dois se encontravam todos os fins de tarde. Um dia, a Rosa se atrasou no encontro com o Rubival e quando chegou em casa o Ferreira já estava lá, com um novo poema na mão.
- Onde você estava?
- Na pedicure. Tive de esperar. Toda a cidade resolveu fazer os pés na mesma hora.
O novo poema do Ferreira para a mulher terminava assim:
"Rosa linda, Rosa rainha,
Rosa perfeita, Rosa minha."
Eles já estavam na cama, luz apagada, quando o Ferreira perguntou:
- Pedicure?
- É.
Silêncio. Ela:
- Porquê?
Ele:
- Por nada.
- Está duvidando de mim?
- Claro que não.
- Quer ver o meu pé?
- Que é isso?
Os amigos estranharam. O Corno Lírico estava distraído. Quieto. Olhar perdido. Não era o mesmo Ferreirão de sempre. Os outros já estavam no terceiro chope e ele ainda não tocara no seu primeiro.
- E aí, Ferreirão?
- O quê?
- Pensando na vida?
- Não, não.
- Tudo bem em casa?
- Bem, bem.
E o Ferreira voltou ao seu silêncio. Dali a pouco, perguntou para a roda:
- Qual é uma rima pra 'desgosto'?
Todos respiraram, aliviados. Então era naquilo que o Ferreira pensava, num poema. E todo o mundo deu palpite. Agosto. Rosto. Mosto. Encosto. Recosto. Imposto. Entreposto...
Texto publicado na edição do Actual de 2 de Abril de 2010