Luís Fernando Veríssimo

Anchovas norueguesas

Diga que você é que está pagando porque o dinheiro é seu. Porque eu sou um imprestável. Porque eu estou desempregado. Porque não sou nada que você pensou que eu fosse quando casou comigo, eu com aquela minha pose de grã-fino.

Luís Fernando Veríssimo (www.expresso.pt)

- Bem...

- Que é, Luís Otávio.

- Não estou encontrando a marca de ervilhas que você pediu.

- É uma lata verde, Luís Otávio. Procure bem que você acha.

- Lata de ervilha, aqui, só tem... Deixa ver. Pode ser esta? Dabeng?

- Dabeng?!

- Petipoá. Só consigo entender isso do que está escrito na lata. Petipoá Dabeng.

- Luís Otávio, onde você está? Aí é a secção de importados, Luís Otávio.

- Mas essa Dabeng não é boa?

- É muito boa. E muito cara.

- Não parece tão cara assim...

- Luís Otávio, essas ervilhas são colhidas uma a uma por virgens no Tibete. São caríssimas. Sai daí, Luís Otávio. Procura as ervilhas na secção de enlatados nacionais.

- Epa! Olha o que tem aqui. Anchovas norueguesas. Lembra, bem?

- Lembro, Luís Otávio. Lembro. Mas sai da secção de importados e compra o que eu pedi.

- Sabe que a latinha de anchovas continua igualzinha à que a gente comprava?

- Que bom. Mas não é mais para o nosso bico.

- Lembra como a gente comia as anchovas com pão e aquele vinho português que eu descobri?

- Lembro, Luís Otávio. Mas isso foi no tempo em que a gente podia.

- Sabe de uma coisa? Vou levar as anchovas.

- Não faça isso, Luís Otávio. E sai da secção de importados imediatamente!

- Só uma latinha. Pelos velhos tempos.

- Eu proíbo você de trazer qualquer coisa da secção de importados desse supermercado, Luís Otávio.

- Proíbe?

- Proíbo, sim senhor. Sou eu que estou pagando por essas compras. Eu que cuido do nosso orçamento. Eu que controlo nossos gastos para evitar supérfluos e extravagâncias.

- Muito bem. Continue, continue. Diga que você é que está pagando porque o dinheiro é seu. Porque eu sou um imprestável. Porque eu estou desempregado. Porque não sou nada que você pensou que eu fosse quando casou comigo, eu com aquela minha pose de grã-fino e de entendido em vinhos. Diga que nós estamos nesta situação por culpa da minha pose. Diga.

- Luís Otávio...

- Olha, tem gente aqui me olhando enviesado. Parece que nunca viram um homem despejando sua amargura num telefone celular, dentro de um supermercado. E na secção de importados. É isto mesmo, gente. Vocês estão vendo um fracassado numa crise emocional e conjugal. Estas anchovas norueguesas são um símbolo do meu fracasso. Do fracasso de um casamento. Do fracasso de uma vida. Estas aqui, ó.

- Luís Otávio, traz as anchovas norueguesas.

- O quê?

- Para de dar vexame e traz essas malditas anchovas norueguesas.

- É só para lembrar os velhos tempos, bem.

- Está bem, está bem.

- Vou comprar o pão para comer com as anchovas. E procurar um vinho adequado. Algo leve, sem muito tanino e com um bom final.

- Está bem, Luís Otávio. Depois vem pra casa. Pega as ervilhas nacionais e vem pra casa.

- Certo.

- E esta é a última vez que eu peço para você ir ao supermercado.

Texto publicado na edição do Expresso de 14 de agosto de 2010