José Manuel dos Santos (www.expresso.pt)

O pescoço ameaçado pela lâmina. A pedra atirada à cabeça. O cuspo apontado à cara. De quem? Do inimigo: a lei, a ordem, a autoridade, a moral, a religião, a pátria, o Estado, a sociedade, a classe, a civilização, tu, eu ("Falta-nos ódio. Dele, nascerão as nossas ideias").

Isto, a obra. Este, o autor: Jean Genet nasce a 19 de dezembro de 1910 (há 100 anos), num hospital, e morre a 15 de abril de 1986, num hotel. O hospital e o hotel são em Paris, mas a mesma cidade para nascer e morrer não diz a sua vida nómada. Essa, contada quase dia a dia por Edmund White numa monumental biografia que li há anos numas férias sem sono, fez-se de escárnio e desafio, liberdade e errância, desprezo e divertimento, ritual e jogo. Ele foi um dândi da afronta. Da vida fez uma mitologia. Havia nele uma rara forma de grandeza, próxima de um poder oculto.

Filho de pai incógnito, é abandonado pela mãe num asilo. Na carta à Assistência Pública, ela dá a sua miséria como razão para não poder ficar com o filho. Escrita com desespero e súplica, esta é uma das quatro cartas agora conhecidas, único rasto desta mulher sem rosto cuja vida durou apenas 30 anos e que o génio do filho não deixa morrer. Já velho, Genet podia ter ido ao arquivo olhar a letra daquela que lhe deu, em vez de uma memória, o vazio dela. Foi desse vazio que ele verdadeiramente nasceu. Podia lá ter ido, mas não quis. "Tarde de mais", foram as palavras da sua recusa.

Com 1 ano, é entregue a uma família de carpinteiros do Morvan. Tornam-no católico, e ele torna-se o melhor aluno da escola. Mais tarde, dá os nomes dos colegas às personagens dos seus romances ("Criar é sempre falar da infância"). Aos 14 anos, começa a verdadeira vida ("Viver é sobreviver a uma criança morta"): fugas, roubos, tratamentos, prisões. Internado numa casa de correção, inicia-se na leitura e no amor. Alista-se na Legião Estrangeira: Damasco, Beirute, Marrocos. Deserta e corre a Europa. É expulso, quando não é preso. Rouba, quando não é roubado. Engata, quando não é engatado.

Regressado a Paris, prendem-no por roubo e falsificação. Lê: romances populares, Dostoievski, Proust, Nietzsche, outros. Na prisão de La Santé, começa "Nossa Senhora das Flores". Sai e volta a ser preso. Na prisão de Fresnes, escreve "O Condenado à Morte". Estes textos circulam como uma lança que passa de mão em mão. Cocteau lê-os e, deslumbrado e invejoso, dá-os a ler. Desde Sade, não se via nada tão violento. Desde Chateaubriand, nada tão eloquente. Desde Proust, nada tão perverso. Começa a idolatria e também o escândalo. É preso pela última vez: Cocteau, Sartre e outros, invocando-lhe o génio, pedem e obtêm o indulto. Só em França, esse país literário, isto podia acontecer.

Escreve "Milagre da Rosa", "Querelle de Brest", "Pompas Fúnebres", "Diário de Um Ladrão". Sartre existencializa-o em 600 páginas de prefácio às suas "Obras Completas": "Sain Genet, Comediante e Mártir". É a glória e o dinheiro. Ele lê o livro e fica seis anos sem escrever. Sai desse silêncio com o grito do seu teatro. Célebre no mundo, vive e ama na tragédia. Não tem casa. Nunca se sabe onde está. Funâmbulo da vida, ama um funâmbulo da morte ("Um artista de circo que se deixa aplaudir é já um burguês"). Radical e provocador, apoia causas, revoltas, terrorismos: Panteras Negras, Palestinianos, Baader-Meinhof. Mas confessa que se os negros americanos e os árabes não fossem tão belos não os apoiaria tanto.

Na sua escrita ("Escrever é levantar todas as censuras"), o mais lírico e refinado francês vive com o mais duro e vulgar calão. Na sua teologia, as virtudes são o roubo, a traição e a homossexualidade ("Um macho que beija outro macho é um macho a dobrar"), vivida como transgressão e castigo. Excluído pelo nascimento, fez da exclusão o seu contra-ataque: o excluído exclui. Traído, trai. Tudo se inverte na sua contramoral: o pecado é a virtude e o profano é o sagrado. Genet é o santo do mal ("A santidade é forçar o Diabo a ser Deus").

'Roubo' em francês diz-se vol e é também 'voo'. Neste homem sem céu nem terra, mas com muitos corpos e muitas almas, o baixo e o alto juntam-se. As palavras roubam-se e acendem-se para queimar. Os corpos voam na fuga e no amor. Aquele para quem a poesia e o crime são irmãos, disse: "A minha vitória é verbal e devo-a à sumptuosidade das palavras." Sem Genet, a literatura saberia menos dos homens - e de si.

Um dia, estava em Marrocos e fui a Larache ver o seu túmulo. Depois de passar um labirinto de vozes e dedos a apontar, cheguei ao antigo cemitério espanhol, que fica entre uma prisão e um bordel. Olhei, desalinhada de tudo, a terra que o cobre e li o nome na pedra. Abaixo, o mar e o seu vaivém, fazendo do distante próximo e do perto longe.

jmdossantos@netcabo.pt colunista regular do "Actual"

Texto publicado na edição do Actual de 18 de dezembro de 2010