José Manuel dos Santos

O homem

Apanhou o autocarro. Durante a viagem, achou que as pessoas o olhavam, se ele não as olhava, e não o olhavam, se ele as olhava. Isso incomodou-o. Quando o autocarro estava a chegar à paragem onde queria sair, tocou a campainha.

José Manuel dos Santos (www.expresso.pt)

Na madrugada tão escura que parecia continuar a noite, o homem saiu de casa com a gabardina vestida e o chapéu de chuva na mão gelada. Morava num daqueles sítios onde moram aqueles que não podem morar noutro sítio. Quando pôs o pé na rua molhada, o frio de fora juntou-se ao frio de dentro. Andou algum tempo e veio-lhe a vontade de beber qualquer coisa quente. Passou por um café, mas estava tão lúgubre e deserto que, só de o olhar, se arrepiou. Continuou a andar e a tossir a sua tosse seca e nervosa. A certa altura, viu uma pastelaria que lhe pareceu quente, iluminada e confortável. Entrou nela como num abrigo. Caminhou até ao balcão, onde, atarefados, três empregados andavam de um lado para o outro. Dirigiu-se a um deles, murmurando "bom dia", e pediu, com uma voz que despertava, um galão e uma torrada. Ao fazer o pedido, esfregou, com rapidez e repetição, as mãos uma na outra. O empregado olhou-o, continuando a fazer o que estava a fazer. O tempo passava e, em frente do homem que esperava, o balcão permanecia vazio. Pensou: "Há gente à minha frente..." E fez da sua espera paciência. O tempo continuava a passar e nada lhe era servido. Tentava justificar o que acontecia: "Se calhar, é a torrada que demora." E aguardava. Mas a espera tornou-se inaceitável e ele disse ao empregado: "Faz favor! Esqueceu-se de mim. É uma torrada e um galão escuro bem quente." O empregado olhou-o com um olhar que significava que o ouvia e falou baixinho com a cozinheira que estava na copa. Pensou: "Foi ver o que se passa com a torrada." Mas o tempo corria e não aparecia nada à sua frente. Primeiro, o homem ficou irritado; depois, ficou embaraçado. Olhava o empregado, o empregado olhava-o - e nada acontecia. A certa altura, confuso e envergonhado, desistiu. Saiu, foi de uma rua a outra rua e entrou noutra pastelaria. Ao balcão, uma mulher agarrava em copos e pratos. Deu-lhe os "bons dias" e pediu-lhe o galão e a torrada com pouca manteiga. Ela olhou-o e ele ficou à espera. O tempo passava e nada se passava. A pastelaria tinha pouca gente e nada lhe era servido. Enervado, disse: "Já lhe pedi, há mais de um quarto de hora, um galão e uma torrada! Se a torrada custa a sair, dê-me um croissant com fiambre." A mulher fitou-o com os olhos claros e continuou a arrumar a loiça. Vexado, o homem tossiu - e foi-se embora.

Já estava atrasado: desistiu de tomar o pequeno-almoço ("Quando chegar ao escritório, vou à máquina e tiro um bolo"). Apanhou o autocarro. Durante a viagem, achou que as pessoas o olhavam, se ele não as olhava, e não o olhavam, se ele as olhava. Isso incomodou-o. Quando o autocarro estava a chegar à paragem onde queria sair, tocou a campainha. Ouviu-se o som metálico, mas o autocarro não diminuiu a velocidade e passou pela paragem como se ela não existisse. Por isso, teve de sair na paragem seguinte, onde havia passageiros para entrar que mandaram parar o autocarro. Na rua cheia de gente, o homem percorreu, num passo apressado, o quarteirão que o separava do edifício onde trabalhava. Chegou ofegante. No átrio, acenou ao porteiro e encaminhou-se para o elevador. Entrou na cabina vazia e carregou no botão do andar para aonde queria ir: o quinto. O elevador não se mexeu. Voltou a carregar e o elevador permaneceu parado. Já se preparava para desistir e ir pelas escadas quando entrou um rapaz que carregou no botão ao lado do qual estava escrito o número 5 - e prontamente o elevador iniciou a sua subida. Abriu-se a porta, ele saiu e seguiu pelo corredor até à sala onde trabalhava. Tirou a gabardina, pendurou-a num cabide e sentou-se à secretária. Olhou os papéis que a cobriam, ligou o computador e verificou que havia uma avaria, embora os computadores dos colegas estivessem a funcionar. Agarrou no telefone e começou a marcar números de gente a quem tinha de falar. Marcava, ouvia o sinal de chamada e ninguém atendia. Passou a outro número e continuaram a não atender. Tentou ainda outro e outro e outro - o resultado foi sempre igual. Virou-se então para um colega e perguntou-lhe: "Sabes se o Freitas já chegou?" O colega olhou-o, mas o olhar não lhe desfez a mudez.

O homem sentia-se como se houvesse na sua frente um vidro grosso que lhe impedisse o acesso ao mundo. Perplexo, olhava o mundo e olhava a sua ansiedade. De repente, sentiu uma vontade nervosa de mijar. Avançou pelo corredor até à casa de banho e deu com ela ocupada. Regressou à secretária. Deixou passar algum tempo e voltou à casa de banho. Já estava livre. Entrou. Dirigiu-se à sanita, mas a urina não saía. Aflito, olhou o espelho. Olhou-o e não viu nele a sua imagem. Não sabia se era ele que não se via no espelho, se era o espelho que não o via a ele...

Este homem existe. Sou eu. És tu. Às vezes, em certos dias, a certas horas...

José Manuel dos Santos

colaborador regular do "Atual"

Texto publicado na revista Atual de 15 de janeiro de 2011