No Natal que é, lembramos os Natais que foram. E lembramos aqueles que nesses estavam e neste já não estão, porque tudo passa e um nascimento é sempre promessa de uma morte. Lembramos os Natais que foram, trazendo-os até nós, para que venham com eles os momentos em que, na sombra iluminada da noite, os rostos sorriam e as mãos entregavam as prendas que nos davam contentamento ou desilusão. Em cada Natal presente há todos os Natais passados: os mais alegres e os mais tristes, os mais frios e os mais quentes, os mais fartos e os mais fracos (mas no Natal aparece sempre o que, se faltasse, o impedia de ser Natal).
Chegava dezembro e os meus sentidos apontavam ao mundo para que nada me fosse alheio. Os dias passavam com a rapidez do desejo e eu ficava atento aos sinais do que ia acontecendo. Era o início das férias e a minha casa rodava sobre si mesma, como nos quadros de Vieira da Silva. Começavam então as grandes limpezas, as grandes preparações, as grandes ansiedades (não podemos esquecer isto!, não pode faltar aquilo!).
De manhã à noite, tudo era lavado, limpo, escovado, encerado: dos soalhos aos tetos, dos móveis aos espelhos, dos cortinados às roupas. Depois, na cozinha, era a azáfama meticulosa e turbulenta que produzia milagres: o bacalhau cozido e o peru recheado, as couves e as batatas, o cabrito assado e as filhós, os coscorões e as fatias douradas. Então, os meus sentidos ficavam ainda mais atentos ao mundo. O olfato distinguia, pelo cheiro que andava no ar, as broas do bolo-rei, as amêndoas das nozes, o vinho do Porto do vinho da Madeira. Com o ouvido, detetava o momento em que os presentes eram escondidos no guarda-vestidos e a minha avó dizia para a minha mãe: "Achas que o menino vai gostar?" A minha avó vivia para mim e, com este imenso amor, a vida fez-me, nesse princípio, uma promessa que não lhe foi possível manter. Com o olhar, olhava as iluminações das ruas da Baixa, as montras das lojas de brinquedos, os acrobatas que voavam no circo. Com o tato, procurava, na escuridão da chaminé, o presente que o Pai Natal lá tinha posto. E com o paladar provava coisas que depois iria comer (o meu pai dava-mas, enquanto a minha mãe dizia: "Isso é só para comer logo à noite!") e depois comia o que já tinha provado.
Nesses Natais, eu era eu, tudo me pertencia, ninguém tinha morrido e, por uns dias, o mundo era perfeito. Até o frio fazia parte dessa perfeição. Para que a perfeição fosse ainda mais perfeita, só faltava a neve. Durante anos, esperei que ela viesse, mas ela nunca vinha. A minha mãe contava a única vez em que a neve tinha caído sobre Lisboa e os seus olhos abriam-se, como outrora se tinham aberto para a ver. Durante anos, sonhei com essa neve no Natal, mas só conseguia olhá-la nas fotografias do jornal ou nas imagens da televisão. Mais tarde, quando estive naquelas cidades onde a neve não falha, verifiquei, mais uma vez, que a realidade e o sonho dela só coincidem quando não coincidem.
Eça de Queirós, numa Carta de Inglaterra, escreveu um dia sobre isto: "O Natal, a grande festa doméstica da Inglaterra, foi este ano triste - dessa tristeza particular que oferece, por um dia de calma ardente, a praça deserta de uma vila pobre, ou dessa melancolia que infundem umas poucas de cadeiras vazias em torno de um fogão apagado, numa sala a que se não voltará mais.../ O que nos estragou o Natal não foram decerto as preocupações políticas, apesar da sua negrura de borrasca (...)./ Não, o que estragou o Natal foi simplesmente a falta de neve. Um Natal como este que passámos, com um sol de uma palidez de convalescente, deslizando timidamente sobre uma imensa peça de seda azul desbotada; um Natal sem neve, um Natal sem casacos de peles, parece tão insípido e tão desconsolado como seria em Portugal a noite de São João, noite de fogueiras e descantes, se houvesse no chão três palmos de neve e caísse por cima o granizo até de madrugada!"
Com aquela inteligência que lhe parece nascer dos sentidos, Eça, nesta carta distante, dá-nos um motivo de esperança para o nosso Natal de crise: "As desgraças públicas nunca impedem que os cidadãos jantem com apetite: e misérias da pátria, enquanto não são tangíveis e não se apresentam sob a forma flamejante de obuses rebentando numa cidade sitiada, não tirarão jamais o sono ao patriota." Que assim seja, e o apetite não nos falte, nestes dias sujos de apreensões e temores!
No Natal que é, lembramos os Natais que foram. Num Natal de um amanhã mais leve, lembraremos o carregado Natal de hoje - e ficaremos admirados, porque o sabor amargo destes dias tornar-se-á então um sabor mais doce. É que, olhando o nosso presente desse futuro, vemo-nos mais novos do que então seremos - e isso nos dará uma tristeza feliz.
jmdossantos@netcabo.pt colunista regular do "Actual"
Texto publicado na edição do Actual de 23 de dezembro de 2010