José Manuel dos Santos

Começo

Para estes cientistas da escassez, que outrora foram os prestidigitadores da fartura, a economia passou a ser uma matemática humana - ou até uma ciência da natureza. Ouvi-los é escutar alguém que acrescenta fogo ao fogo para o apagar.

José Manuel dos Santos (www.expresso.pt)

Em cada ano que nasce há o desejo de sermos felizes. Na festa com que passamos o texto rápido do tempo existe uma magia de felicidade. Votos e passas, música e champanhe têm um movimento ascendente. Mas, neste princípio, tudo é ao contrário. "Assustador" é o nome do ano que começa e dos seus dias tão pouco nossos. "Ano assustador", repetem-nos e repetimos. Por isso, respiramos fundo a preparar o fôlego para uma caminhada longa e lúgubre. As vozes carregam-se de rouquidão para dizer medo, carência e raiva. Os olhares acompanham-se de inclinação para dizer cuidado, apreensão e suspeita.

Os que falam para serem ouvidos afirmam agora as grandes virtudes (o rigor, a poupança, a austeridade, o trabalho, o esforço, a responsabilidade) que têm de suceder aos grandes pecados (o laxismo, o esbanjamento, o desperdício, o ócio, a inércia, o facilitismo). Mas há, nesta peça, o que não bate certo. Vemos que os atores da tragédia de hoje foram os atores da comédia de ontem. Por isso, os seus rostos nos são máscaras e os seus lamentos risos. Por isso, não os levamos a sério.

Economistas, financeiros, gestores dizem, com a altivez de quem submeteu o mundo e fez dele um desastre: "A realidade regressou depois da ilusão"; ou: "Números são números e não há volta a dar." Para estes cientistas da escassez, que outrora foram os prestidigitadores da fartura, a economia passou a ser uma matemática humana - ou até uma ciência da natureza. Ouvi-los é escutar alguém que acrescenta fogo ao fogo para o apagar. Para estes moralistas do défice, que dantes foram os libertinos do lucro, a economia é uma teologia e os seus mecanismos mandamentos divinos. Cada um destes salvadores julga-se o Noé de uma arca donde se olha o dilúvio com superioridade e sobranceria. Mas Noé não é o nome que mais lhes convém. Cada um deles é, isso sim, uma Maria Antonieta que se desconhece ("O povo não tem pão? Que coma brioches!"; "O desemprego aumenta, cortem os subsídios!"). A sorte, para eles, é que os Robespierres são de bolso e andam distraídos...

A política, essa, tem a autoridade de quem não sabe o que fazer e faz o que não sabe. E os que lhe usam o rosto parecem insetos à volta de uma luz que cega. A verdade de hoje é o erro de amanhã e o erro de ontem é a verdade de hoje. No "Rei Lear", diz-se: "Este é o sinal dos tempos: os loucos guiam os cegos."

Eu ando na cidade e vejo loucos, cegos, pedintes. Vejo a realidade desta irrealidade e a claridade desta escuridão. Um dia, as ruas e as lojas estão cheias de gente. No dia seguinte, estão desertas, num Chernobyl depois do desastre. Numa semana, tudo avança. Na semana seguinte, tudo recua, como num filme passado ao contrário. Nas montras, roupas, sapatos, móveis, candeeiros estão tapados por palavras enormes: saldos, promoções, reduções, baixa de preços. Nos passeios, mendigos, vagabundos, sem-abrigo, arrumadores correm na sua mímica de piedade, na sua dança de súplica. Um diz um discurso, outro atira um gesto. Há-os líricos e dramáticos, tímidos e exibicionistas, eruditos e iletrados, gentis e agressivos. Um pede e apresenta documentos. Outro implora e expõe feridas. Este usa o choro para comover. Aquele exibe a navalha para ameaçar. Uma enumera o que fez e os sítios onde trabalhou. Outro tem um enorme letreiro a proclamar a sua miséria. Esta ruge palavrões irados: "Foda-se, dá-me um euro! Fui puta, mas agora já ninguém me pega!" Aquele, enrolado num cobertor, estende a mão torcida e escura. O que anuncia, há anos, o fim do mundo ri-se, satisfeito, com a atualidade da sua profecia. O que fala de fome mostra as fotografias dos filhos. Nunca sabemos a verdade ou a mentira do que afirmam. A minha esmola recompensa o engenho. Quanto mais a ficção é ágil e imaginativa, mais dou. Mesmo no logro, o talento sempre me encantou...

Passo e eles estão a pedir. Falam português, ucraniano, crioulo, árabe, inglês, espanhol. Nesta Babel, cuja torre desce para o inferno em vez de subir para o céu, há concorrência, produtividade, competitividade, cotações de mercado, rating, notações, economia real. Aprendo mais aqui sobre a crise do que ao ouvir os economistas falar dela...

O ano começa e o seu começo parece um fim. Na rua, a multidão é atravessada pelos pedintes. Este, com um riso contente e cruel, diz: "2011 vai ser o ano da igualdade. Vão ficar todos a pedir como nós." O homem de fato azul-escuro e gravata azul-clara a quem ele diz isto estremece o olhar e acelera o passo. O mendigo segue-o, persegue-o, sempre a dizer: "Vão ficar todos a pedir como nós!" Ele dá-lhe dinheiro para o afastar. O mendigo vai e diz o mesmo a outro, a outros: "Vai ser o ano em que todos vão ficar a pedir..." E olha, alucinado, como se lesse a sina ao mundo. E corre, apressado, como se quisesse chegar antes do desastre...

José Manuel dos Santos

colunista regular do "Atual"

Texto publicado na revista Atual de 8 de janeiro de 2011