Jaime Nogueira Pinto

Considerações intemporais

Uma característica das correcções políticas é a recusa do real, das coisas como são e das suas consequências. O optimismo antropológico é também uma negação obstinada e continuada do real, inspirada nas mundivisões do Século das Luzes.

A literatura desse período é uma literatura de salão, para cortesãos, literatos e literatas; são utopias positivas, em que as sociedades pensadas racionalmente e construídas por processos de engenharia mental são sempre superiores às sociedades existentes; como os 'outros', os antípodas civilizacionais - persas, chineses, índios, primitivos -, são superiores aos europeus; e as suas religiões superiores à nossa; e os seus costumes e instituições melhores que os nossos. Isto em relação a povos e culturas que praticavam regularmente a antropofagia, a tortura, o massacre.

Esta tradição utópica, desenvolvida naquilo a que George Sorel chamou as "ilusões do progresso", teve um destino conhecido. Com Marx e Engels, e por obra de Lenine e Mao, veio a engendrar e a inspirar os socialismos reais. A sua base de legitimidade era o vício, o erro, das sociedades reais - capitalistas, tradicionais, hierárquicas, religiosas, nacionais. Por isso procuraram essa construção racional do melhor dos mundos. Acabaram produzindo sociedades policiais, desiguais, tirânicas, oligárquicas e os mais sanguinários regimes da História.

Esta foi a linha da democracia totalitária, convencional, francesa, robespierrista, que abriu caminho para a esquerda sistémica e vanguardista. Marx daria uma base filosófica materialista e uma teoria geral de História Económica, como História da Economia Política, para legitimar e sofisticar o modelo. Os 'desastres' do capitalismo trariam o resto. A História do século XX ilustrou o destino desta construção.

A outra linha deste optimismo tem a ver com o individualismo anglo-saxónico, entre Hobbes, Locke e Stuart Mill. E com a Revolução Inglesa, que resultou num empate a que os ingleses conseguiram dar uma forma dinâmica e de síntese com as suas instituições do século XVIII que permitiram essa mistura única de comércio e império, de filantropia e poder naval, de indústria e poder, de tecnologia e religião. E a América, filha dilecta da Revolução Atlântica, manteve esta simbiose e estas características, dentro de uma dialéctica liberais-conservadores que chegou até nós.

Hoje o modelo convencional marxista morreu. Com a contra-revolução capitalista na RPC e o fim da União Soviética, ficou reduzido às microtiranias cubana e norte-coreana. Restos patéticos. A China e a Rússia são hoje regimes nacionais autoritários: o chinês, de capitalismo de Estado, em que a política comanda a economia, que procura o fortalecimento da nação; a Rússia, de capitalismo vigiado, em que o poder político (Putin) mostrou aos poderes económicos que podem ganhar dinheiro - desde que não se metam no seu caminho.

Em certo sentido, embora a linguagem mantenha essas 'ilusões do progresso' - e hoje uns custos visíveis e ocultos da sua ficção -, fomos aprendendo a viver com elas e a sobreviver-lhes. Mas, às vezes, mesmo só na forma, podia haver mais verdade.

P.S. Despeço-me hoje dos leitores do Expresso. Foi interessante, para mim, esta coluna mensal. Espero que também tenha sido para vós.