Inês Pedrosa

Os Sócrates dos afectos

Esta geração foge do calor do abraço e procura apenas os aplausos da multidão.

Inês Pedrosa (www.expresso.pt)

Esquece esse gajo. É um Sócrates dos afectos: nunca é nada com ele, nunca sabe de nada, nunca fez nada, nunca disse nada.

Esta frase, dita por uma mulher a outra mulher, numa mesa de café, recordou-me a teoria brechtiana segundo a qual tudo é política - em particular o que menos parece sê-lo. O mesmo é dizer que tudo é moral, porque a política é a organização social dos valores que alicerçam uma sociedade. E tudo é economia, como dizia Marx, porque há exploradores, explorados, lucros e prejuízos injustamente distribuídos em todos os sectores das relações humanas. O problema de tudo ser tudo é que, ao fim do dia, tudo é nada. As palavras dissolvem-se no silêncio dos ecrãs - sem o grão da voz, sem o compromisso do rosto, sem a disponibilidade da presença. Por alguma razão, os telemóveis com transmissão de imagem tiveram tão pouco sucesso, ao contrário das mensagens escritas. SMS: Short Message Service. Uma pessoa está no sítio A com a pessoa B, mas por SMS pode dizer que está no sítio C, sozinha. O tom da voz pode denunciar a mentira, a SMS não denuncia nada, nem compromete ninguém.

Nas escolas secundárias, os adolescentes namoram por SMS. Do princípio ao fim do namoro, mal se vêem. Eles não vão procurá-las nos intervalos das aulas para não fazerem figura de parvos diante dos amigos deles e para não serem troçados pelas amigas delas. Elas idem, pelas mesmas razões e ainda uma suplementar, rançosa de velha: não querem parecer oferecidas. O feminismo já fez o seu caminho. Quando percebeu que os homens não gostam de mulheres com iniciativa, o feminismo meteu a viola no saco, voltou para casa e passou a falar apenas, no tom manso e vegetal que se aprecia no sexo feminino, de desigualdade salarial - da janela para a rua, em palavras bem maquilhadas, enquanto estende a roupa do marido e dos filhos.

É tudo por SMS: o pedido de namoro, a aceitação, as conversas. Curto e eficiente. Sem problemas de saúde, para alívio dos pais. Nem gripe A, nem gripe das aves, nem sida, nem gravidez. SMS de um menino de 10 anos à sua mãe: "Gostas mesmo muito de mim?" A mãe telefonou-lhe: "Claro que gosto muito de ti, mas porque é que não me falaste? Não era melhor ouvires a minha voz a dizer-te que te adoro?" O menino respondeu que teve vergonha de fazer a pergunta de viva voz. Perguntava-me há dias, ao vivo e a cores, uma menina de 12 anos: "Achas que vou dar-me ao trabalho de gostar de um rapaz para depois ele gozar comigo? Só se fosse parva." Eu, criada pelo Fred Astaire e pela Anita, como costuma dizer uma amiga minha sobre a nossa geração de mulheres, lá titubeei à garota que não tinha de ser assim, que os rapazes não são todos iguais, que não é preciso ter pressa, mas que um dia ela há-de descobrir que é muito bom amar alguém, partilhar com uma pessoa especial as coisas de que gostamos. A garota retorquiu-me, com um ar apiedado: "O teu mal é que lês muitos livros e vês demasiados filmes românticos. Até gostas de musicais. Sabes pouco da vida."

Saber muito da vida, para esta nova geração que sabe tudo o que há para saber sobre sexo, drogas, pedofilia e corrupção, é não acreditar nos outros. Não ter nenhuma expectativa imaterial: o sonho do encontro com a alma gémea foi substituído pelo sonho da aparição televisiva. Estes meninos não estão disponíveis para amar; sonham ser famosos, adorados e aplaudidos. O resto é conversa. Por SMS. De tanto repetirmos às crianças que era perigoso que saíssem à rua sozinhas e que desconfiassem dos senhores desconhecidos que lhes quisessem oferecer rebuçados, elas criaram um muro de medo entre elas e o mundo. Os programas televisivos de humor político habituaram-nas a ver os governantes e os partidos como gangues de bandidos bem vestidos. A educação sexual ministrada como um catálogo de doenças tenebrosas em estilo de alerta vermelho fez o resto, ou seja, a consciência de que a vida só pode experimentar-se sem dor de ecrã para ecrã. Tamborilam o amor ao de leve nas teclas dos telemóveis e dos computadores, pianos sem som nem alma nem cordas. Criámos uma geração apavorada com os sentimentos, os compromissos, a decepção e o sofrimento. Uma geração de vitoriosos solitários, que foge do calor do abraço e procura as palmas da multidão. Com quem aprendeu esta geração a querer tão pouco?

Texto publicado na edição da Única de 13 de Março de 2010