Inês Pedrosa

Obrigada

Sou muito mais livre do que era quando aqui cheguei.

Inês Pedrosa (www.expresso.pt)

Termina hoje, por decisão da nova direcção do Expresso, esta crónica. Devo este espaço, iniciado em Janeiro de 2002, a José António Saraiva, então director do jornal. Estou certa de que José António retorquiria que não lhe devo nada, e essa atitude, tão rara num país habituado a preferir a rotina alternada dos favores e obediências em detrimento do exercício da consciência ética e da liberdade, reforça a alegria deste agradecimento. O convite nasceu das conversas e do trabalho em torno de um projecto de revista mensal, com design de Jorge Colombo, que Helena Matos e eu apresentámos ao Expresso. Chamava-se 'Única' essa revista que não chegou a nascer: as matérias dos números zero e um, que chegaram a ser feitos, foram publicadas na revista do Expresso, e José António Saraiva viria depois a solicitar-nos autorização para rebaptizar a revista com o título que mantém até hoje. Agradeço também a Nicolau Santos o entusiasmo com que acolheu e defendeu o projecto dessa 'Única' inicial. Agradeço a Henrique Monteiro a manutenção desta crónica ao longo dos anos em que dirigiu o Expresso e a Violeta Lòpiz as ilustrações delicadas e inteligentes que a têm iluminado. Durante nove anos, semanal e ininterruptamente, encontrei aqui o desafio de pensar e escrever livremente, sem limites temáticos ou censórios de espécie alguma. Entre 1989 e 1993 tivera o privilégio de pertencer aos quadros da redacção do Expresso, onde aprendi e cresci muitíssimo. Esta página não chegaria para agradecer a todos os que, nesta casa, me acompanharam e me ajudaram a pensar mais e melhor. Mas não posso fechar o capítulo sem agradecer ao fundador deste jornal de referência, Francisco Pinto Balsemão, não só as palavras de estímulo que repetidamente dele recebi, mas sobretudo o exemplo de independência, coragem e rigor que sempre nele encontrei.

Sem leitores não existiriam cronistas - nem jornais. Tive a sorte de encontrar leitores atentos e exigentes. Agradeço tanto aos que me levantaram o ânimo em momentos de especial cansaço ou desalento como aos que me espicaçaram as meninges, fustigando-me com críticas ferozes - e até, por duas vezes, processos judiciais. A condição de arguida é, aliás, muito útil para quem, como eu, tem como principal objectivo de vida o entendimento profundo da natureza humana.

Procurei pensar sobre cada tema, fosse ele a guerra no Médio Oriente ou a tragédia eterna da violência dita 'doméstica', a política cultural ou o trabalho infantil, como se tivesse aterrado de Sirius (isto dizia Augusto Abelaira sobre o seu método de cronista) e olhasse para este mundo pela primeira vez - ou seja, sem um programa de pensamento prévio encaixado numa cartilha. Acreditei sempre que o risco, mais do que provável, de errar é muito menos grave do que o erro de comprar, alugar ou roubar um pensamento já feito. Nunca tive a pretensão da imparcialidade - todos somos parte de alguma coisa, em qualquer situação; apenas procurei a justeza, isto é, a compreensão ou compaixão, no sentido de partilha da paixão alheia. Com Maria Antónia Palla, jornalista e figura humana de invulgar grandeza, aprendi a descascar a realidade a partir das histórias individuais. Da atenção ao particular nasce o respeito, e tudo é particular e íntimo antes de ser comum e político. Não aceito a distinção entre os 'temas fracturantes' e os outros, ditos 'sérios'; entendo a dicotomia como uma forma de ditadura particularmente castradora.

Walter Galvani, escritor brasileiro, resumiu o labor da crónica nesta imagem exacta: "Ofício de cronista é como voo de gaivota, rente às ondas, até o ponto e a hora de fisgar o peixe. E então vem o difícil: voar mais e mais, sem deixá-lo cair." As palavras são instrumentos de voo. Instrumentos sensíveis e precisos, que não resistem à ferrugem do medo ou da falsidade. Pensar é perigoso - e pensar em público, semana após semana, mais perigoso ainda: cria uma corrente de ar que desloca as ideias instaladas. Sem perigo não há liberdade. Sou muito mais livre do que era quando aqui cheguei. A gratidão que sinto por todos aqueles - conhecidos ou desconhecidos, amigos ou inimigos - que me arejaram o cérebro ao longo deste trajecto não tem medida. Ter tanto e tantos a quem agradecer é a melhor aproximação que conheço à felicidade. Obrigada.

Nota: Inês Pedrosa escreve de acordo com a antiga ortografia.

Texto publicado na revista Única de 19 de fevereiro de 2011