Inês Pedrosa

O lance do poema

Os poemas contêm o dom de atraírem outros poemas, como ímanes. 

POBRES leitores deste rico Ocidente atulhado em bugigangas de papel disfarçadas de livros, tralha iletrada embrulhada em talha dourada: quereis saber quem sois? Quereis conhecer o fundo infinito do vosso ser sem fundo? Nos poetas o encontrareis. É para isso, e para vós, que eles trabalham. Não falo só nem particularmente dos fazedores de versos, pois há muito quem verseje sem que se veja um vero sopro que sério seja nesse versejar. Nem é de sério sisudo que falo, que os há empalados em dicionários e prontuários de arte, máquinas de regurgitar. Falo dos poetas convocados pela palavra, em prosa ou verso, ficção ou ensaio, não dos seus muitos e muito fáceis imitadores - aqueles costureiros do tempo que, com um retalho de real (uma frase de autocarro, uma linha de teoria, um alinhavo cinéfilo), mais um laivo de turismo virtual e um pó de humor de manual, fazem volume de estilistas - seja na versão compacta da feijoada paradigmática para triunfo académico ou na versão leve da salada histórica para consumo endémico.

O que é um poema? É algo para guardar. Essa foi a primeira coisa que aprendi com o brasileiro Antonio Cicero, esplendoroso poeta (também ensaísta, como é próprio dos poetas, sendo o ensaio a tempestade que prolonga o relâmpago do poema) da língua portuguesa - e das outras todas, porque a poesia é babélica. Só não dá por isto quem vive com o ouvido da alma curvado, por excesso de reverência para com a língua inglesa.

Explica-nos Antonio Cicero no primeiro poema do seu livro "Guardar" (edições Quasi, 2002): "Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não/ se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista. / Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto/ é, iluminá-la ou ser por ela iluminado./(...) Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro/ Do que pássaros sem vôos./(...) Por isso o lance do poema: / Por guardar-se o que se quer guardar." A segunda coisa que aprendi com Antonio Cicero foi a sair. O português do Brasil possui aliás o substantivo "saideira", que não existe em Portugal, este país que sabe exilar-se mas nunca soube sair. Os poemas contêm o dom de atraírem outros poemas, como ímanes, e assim me acode de repente o poema daquela científica canção de Chico Buarque chamada "Trocando em Miúdos": "Eu bato o portão sem fazer alarde/ eu levo a carteira de identidade/ uma saideira, muita saudade (...)". No último poema de "A Cidade e os Livros" (edições Quasi, 2006), Cicero escreve: "Largar o cobertor, a cama, o/ medo, o terço, o quarto, largar/ toda simbologia e religião; largar o/ espírito, largar a alma, abrir a/ porta principal e sair. Esta é/ a única vida e contém inimaginável/ beleza e dor. Já o sol,/ as cores da terra e o/ ar azul - o céu do dia - /mergulharam até a próxima aurora; a/ noite está radiante e Deus não/ existe nem faz falta. (...)". Os poemas de Antonio Cicero são vertiginosos, sábios, simples e autênticos como espelhos. São também, muitas vezes, carnalmente eruditos, viajam pelo interior do tempo para mostrar a face actual, quotidiana, de Ícaro e Dédalo e Prometeu. No prefácio de "A Cidade e os Livros", José Miguel Wisnik sublinha: "Uma dicção clássica, grega e latina, capaz de odes e nênia, acha o ponto exato da ruína eternamente contemporânea." Wisnik é, além de arguto ensaísta, um inspiradíssimo músico - actuará no próximo dia 29 na Culturgest, em Lisboa, espectáculo que recomendo vivamente. Antonio Cicero deu ontem uma lição acerca "Da Actualidade do Conceito de Civilização", no ciclo "O Estado do Mundo" da Fundação Gulbenkian - o melhor da cultura brasileira começa a desembarcar regularmente em Portugal.

A terceira coisa que aprendi com Antonio Cicero foi a reivindicar o direito ao juízo de valor, e, em particular, ao juízo estético. Na introdução ao seu prodigioso volume de ensaios "Finalidades sem Fim" (edições Quasi, 2007), Cicero esclarece que tais juízos são "uma exigência da própria poesia". Utilizo aqui o adjectivo "prodigioso" com toda a sua artilharia semântica: neste espaço não cabe o desossar de um livro de 300 páginas, pelo que o adjectivo serve de exortação a que corram a comprá-lo - mesmo que não vejam a utilidade da poesia (o livro também é sobre isso), ou da música, ou da pintura, ou sequer da filosofia. Cicero tem a arte de tornar claras as coisas obscuras e de caminhar, serenamente, contra as evidências, conduzindo-nos a descobrir que "muitas vezes o óbvio é meramente o impensado" (pág. 91). O seu léxico é transparente e o seu espírito uma biblioteca de Alexandria. O primeiro e o terceiro ensaios do livro - "Poesia e Paisagens Urbanas" e "O Tropicalismo e a MPB" - oferecem-nos reflexões inteligentíssimas sobre o mito da vanguarda. O segundo e o quarto - "A Falange de Máscaras de Waly Salomão" e "Drummond e a Modernidade" - dão uma surra revigorante nos dogmatismos crípticos. Os outros, girando em torno desse diamante central intitulado "Poesia e Filosofia", são investigações tão minuciosas quanto surpreendentes sobre essa finalidade sem fim que, no trilho de Kant, Cicero persegue: a beleza.

Inês Pedrosa