Inês Pedrosa

Faça-se justiça

É tempo de criar uma revolta contra o feudalismo económico em que vivemos.

Inês Pedrosa (www.expresso.pt)

Um sistema judicial que permite a eternização dos processos é um sistema de produção minuciosa de injustiça. Não é uma balda ou um regabofe, como tantas vezes repetimos: isso significaria que a Justiça portuguesa sofre de uma incompetência crónica. É essa a ideia simpática e sofredora que o poder tem alimentado desde há séculos. É uma ideia anterior à democracia, anterior à República - uma ideia que já percorria os sermões do padre António Vieira, no século XVII: não fosse a burocracia e a sua teia de estupidez, o país seria outro. A realidade é inversa: a burocracia tem sido tecida e mantida com extrema competência por todos os poderes, como uma arma de extrema precisão. A Justiça é o coração da democracia, por isso convém que ela não funcione. Que seja temível, cara, ineficiente - na prática, inacessível. As pessoas comuns têm a noção de que é inútil participar um roubo ou uma ameaça. As mulheres portuguesas sabem que de nada lhes vale apresentar queixa na Polícia contra homens violentos, a não ser tornar mais fácil a identificação do criminoso depois de elas aparecerem mortas. Desde que o Código de Processo Penal foi alterado e a prisão preventiva quase desapareceu, os crimes de violência doméstica dispararam. As humilhantes casas de refúgio para as vítimas não resolvem nada: porque hão-de as vítimas esconder-se, ser impedidas de trabalhar, ter de mudar a escola dos filhos, enquanto os seus algozes vivem à vontade? Os obstáculos à prisão preventiva não foram desenhados contra as mulheres nem a pensar neste tipo de criminalidade, endémica mas ainda confortavelmente invisível; foram, sim, desenhados para proteger certos senhores protegidos por outros senhores. Acabámos de saber que os advogados de defesa do processo Casa Pia arrolaram centenas de novas 'testemunhas'. Que Justiça é esta que permite adiamentos infinitos?

Nos últimos tempos temos lido, visto e ouvido incontáveis justificações sobre escutas, publicação de escutas e procedimentos processuais. As escutas publicadas pelo "Sol" revelaram um tenebroso mundo de boys do poder urdindo um esquema para, com dinheiros públicos, calar meios de comunicação social incómodos. Se a constante invocação do 'chefe' - ou seja, o primeiro-ministro de Portugal - como mandante desse esquema é abusiva, o 'chefe' deve-nos explicações. E deve, obviamente, tratar urgentemente de remodelar as suas companhias. Que um desses boys tenha entrado como administrador executivo da PT, em 2006, pela mão de José Sócrates e com um salário anual de 2,5 milhões de euros é, por si só, uma afronta ao povo português e às suas dificuldades diárias de sobrevivência. Que o poder real e os orçamentos da PT estejam na mão de um ser como este Rui Pedro Soares é mais do que preocupante. Precisamos de esclarecimentos rápidos sobre as negociatas que estas escutas vieram demonstrar. E precisamos que o Governo nos diga que justiça existe nestes salários astronómicos, enquanto os parcos salários dos funcionários públicos são congelados. Não são as manifestações pela liberdade de expressão que nos fazem falta: faz-nos falta uma revolta cívica geral contra o feudalismo económico em que vivemos, com os administradores das empresas públicas a enriquecerem à custa do empobrecimento geral da nação.

Ao contrário do que alguns nos querem fazer pensar, o problema do país não é de liberdade de expressão. A famosa crónica de Mário Crespo que o "Jornal de Notícias" se recusou a publicar teve imediata publicação em vários outros lugares - incluindo em livro. Os que declaram que a censura é agora pior do que antes do 25 de Abril, ou são novos e ignorantes, ou sofrem de Alzheimer, ou viviam à sombra das benesses dos senhores desses outros tempos. Há ainda por aí muito espírito ditador apressadamente remodelado em democrata. Só os que têm medo de perder lugares ou mordomias podem queixar-se de falta de liberdade - mas a cobardia nunca foi uma medida de aferição da liberdade.

Entretanto, não nos enredemos na legalidade ou ilegalidade das escutas e nos mil pormenores dos procedimentos processuais com os quais os 'especialistas' procuram tapar-nos os olhos. Não nos deixemos intimidar pela suposta 'complexidade' da Justiça: essa é a roupa de que a vestem os acólitos do poder para a manipular a seu bel-prazer. Precisamos, de facto, de exigir explicações claras sobre este caso que envolve senhores da política e senhores dos media. Obtidas de porta aberta ou pelo buraco da fechadura, as escutas que o jornal "Sol" publicou dão-nos o retrato de um crime em que ninguém sai ileso - mandantes, compradores e comprados.

Texto publicado na edição da Única de 20 de Fevereiro de 2010