As mentiras de uma criança são fáceis de desarmadilhar. Difícil é fazê-las falar. Eu sei. Todas as crianças que alguma vez foram vítimas de abuso sexual o sabem. Mas sabem-no sempre demasiado tarde. Quando acontece, a vergonha é maior do que tudo. Maior do que o medo. Sentimo-nos cúmplices, porque pensamos que os adultos sabem sempre mais. Temos medo que deixem de gostar de nós. Todos eles: os que abusam de nós e os que nos protegem. Se o abuso acontecer muito cedo na nossa vida, nem aprendemos a distinguir uma coisa e outra. Tanto pior quanto mais próximo for o abusador. É diferente ser-se abusado por um pai ou por um parente afastado. Não imagino o que seja ser-se abusado por um pai. Mas sei o que é ser-se abusado. Milhares de crianças o sabem e calam-se. Mesmo nos abusos menos graves calam-se, como eu me calei. Para não entristecer a mãe. Para não horrorizar o pai. Para não desiludir ninguém.
Depois de escrever a história da menina de Fronteira, presa numa instituição, longe da mãe e dos avós, por ter confessado os abusos do pai, soube de várias outras histórias semelhantes. Uma mulher da minha idade soluçava, ao telefone: "Eu que nunca disse ao meu filho uma palavra que fosse contra o pai, pelo contrário, sempre tentei que ele mantivesse a ligação com ele, porque sei como é importante a imagem do pai para um menino, agora sinto-me diante de um pelotão de fuzilamento." Síndrome da alienação parental, dizem eles. Uma expressão técnica que afasta os papões. As pessoas divorciam-se e procuram virar os filhos contra o ex-cônjuge, é muito simples. Há especialistas em detectar esse síndrome como um vírus da gripe, no ar, sem sequer conhecer o pai ou a mãe que acusam. Os tribunais desconfiam, por princípio, dos pedopsiquiatras que acompanham as crianças, porque são contratados por uma das partes em conflito. Mas aceitam e acarinham os relatórios dos teóricos da "síndrome de alienação parental", mesmo que esses teóricos nunca tenham posto a vista em cima do progenitor que acusam. Deviam ter mais cuidado.
Aquela senhora americana que veio a Portugal explicar que é muito fácil incutir nas crianças "falsas memórias", no auge do processo da Casa Pia - processo que se esfuma no silêncio do horizonte, já repararam? -, foi entretanto expulsa da Ordem dos Psicólogos dos Estados Unidos. Claro que a essa notícia ninguém deu eco. Teóricos há muitos. Mais do que casais realmente capazes de fazer com que os seus próprios filhos acusem o outro progenitor de abuso sexual, só para se vingarem dele. Até porque, repito, uma criança abusada cala-se. Eu sei. Como sei, e isso sabemos todos, que a maior percentagem de abuso acontece no interior da família. E sabemos todos que um homem violento é tendencialmente um abusador sexual. Porque não é de sexo que se trata, mas de poder. De exercer um poder absoluto sobre alguém. Os juízes não acreditam nesta mulher que sabe que o seu filho é abusado pelo pai, porque o pai não é homossexual. Tem relações com mulheres. Os preconceitos contra a homossexualidade persistem, porque tranquilizam: criam um muro entre o que é "normal" e o que não é. Este menino de 7 anos, abusado pelo pai, diz à mãe: "Não te preocupes, mãe, eu não o deixo voltar a fazer isso. Eu gosto muito dele." Este menino acabou por falar - depois de anos a acordar aos gritos a meio da noite, com dores súbitas e inexplicáveis. Os seus desenhos, dizem os especialistas, revelavam claramente o abuso, desde há muito tempo.
Acontece porém que o pai é amigo de um magistrado influente. A família do pai tem uma proximidade com o poder judicial que a mãe não tem. Em tempos, a família do pai disse à mãe que tinha que ter paciência, porque aquele que estava para ser pai do seu filho sofria de uma esquizofrenia que não queria admitir. Agora, todos negam alguma vez ter dito isso: o monstro é ela, a mãe acusadora. Recordam aos juízes que o seu pai morreu quando ela estava grávida, o que só pode ter-lhe afectado o juízo. Contratam uma especialista na detecção abstracta da "síndrome de alienação parental", que faz um relatório extenso que transforma a mãe - que não conhece - numa louca.
E a criança vive no meio deste inferno. Quando é que se deixam de teorias para proteger os abusadores e começam a pensar na dignidade das crianças, senhores doutores juízes? Para que uma criança fale, é preciso muito. Mesmo nos abusos mais leves. Mas o que é um abuso leve?