Contraste

Vila Real de Santo António

Em Portugal nada é demolidor

Uma pessoa diz: "Ah, aquilo ontem foi demolidor para fulano", ou "oh, esta notícia é demolidora para sicrano" e mesmo "ena, beltrano demoliu-os a todos". São falsidades porque, no dia seguinte, fulano e sicrano apresentam-se sempre em risonha forma, enquanto beltrano tem de reconhecer que, afinal, não demoliu ninguém, apesar de ter estado convencido, na véspera, de que tinha arrumado com tudo e com todos. Concluindo: em Portugal nada é demolidor.

Nem nada, nem ninguém. E, por isso mesmo, gosto de Vila Real de Santo António. O que uma coisa tem a ver com a outra? Muito. Trata-se de uma cidade demolidora. Foi projectada pelo Marquês de Pombal na ponta do Algarve para fixar uma população, que não existia, e para centralizar na margem do Guadiana o comércio e a indústria do far-sotavento. À falta de gente, o Marquês de Pombal mandou demolir Monte Gordo e obrigou a sua população de pescadores a deslocar-se em massa para a nova cidade. E foi o que acabou por acontecer. Temos, assim, de pé Vila Real de Santo António, com a sua praça central, o seu traçado rectilíneo de arquitecto, a sua algazarra espanhola, a sua bela marina e ainda a rua do Dr. Teófilo Braga onde pontificam os Armazéns Sol Dourado e a Óptica Martinho que tem sempre na montra seis Nossas Senhoras-barómetro, em tamanhos diferentes, com mantos que mudam de cor consoante o tempo. Só isto vale o passeio.

Mas para provar que em Portugal nada é demolidor, nem ninguém é demolidor, dois séculos depois da sua brutal demolição, temos também de pé Monte Gordo, com os seus hotéis, o seu pequeno caos, a avenida marginal, o Café Talismã e os restaurantes na praia, só para provar que mandar abaixo até é fácil, mas, em Portugal, ninguém liga nenhuma a essas coisas e tudo se recompõe. De Monte Gordo para Vila Real de Santo António vai-se de carro pela EN 125.

E passa-se por uma povoação chamada Hortas que se estende em comprimento dos dois lados da estrada e, não sei bem porquê, faz-me lembrar o México. Quando Hortas acaba começa logo a minha cidade preferida.

Passando a Loja Hua Tali, mais um bocadinho e estamos na rotunda. E depois é só seguir a rua que vai dar ao farol. Uma pessoa diz: "Uma cidade com farol é outra coisa." E é.

Leonor Pinhão



Cuidado forasteiros!

Há os sítios com que embirramos. Mas também há os sítios que embirram connosco. O facto de raramente coincidirem é deveras desgastante. Com o tempo, claro, conseguimos vir a odiar os lugares onde somos odiados e até arranjar algum afecto pelos lugares que gostam mais de nós que nós deles. Mas nunca atingimos o equilíbrio. Vila Real de Santo António, apesar da minha predisposição bajuladora — extensível a todas as nossas vilas fronteiriças, por serem os últimos ou primeiros bocadinhos do amado torrão antes de ceder ao de Alicante — é o exemplo mais flagrante de uma terra onde fui sempre mal recebido. Por isso lhe guardo um rancor especial, pelas décadas amanhado.

Confesso-o para fugir à hipocrisia topográfica que caracteriza o nosso povo. Em particular, arranjamos sempre maneira de detestar todas as terras que não a nossa. Mas, em público, parecemos cançonetistas brasileiras em tournée, ronronando o quanto nos comove estar em Salvaterra de Magos e soprando beijinhos e saravás ao Wanderlei da Junta e ao Vinícius de Moraes local. Em Vila Real respira-se ressentimento. Por muito que nos procuremos demorar por aqueles arruamentos horríveis, a recepção é sempre a contragosto; sempre obstinada e obstipante. É como se lidasse mal com o estatuto de terra de passagem e, em vez de tentar cativar os passantes, escolhesse apressá-los orgulhosamente.

Uma pessoa detém-se para beber um gin tónico e, caso se caia na perversão de gostar dele com gelo e limão, fazem questão de nos despachar para Espanha ou recambiar para Lisboa, onde há gelo e limão até fartar. Mal me sento, oiço sibilar as pedras da calçada: "É andar; é andar — que isto aqui não é para quem tem sítio melhor aonde ir! Ou voltar! Vamos embora, que Vila Real de Santo António não é poiso de piratas ou de aves de arribação!" Os habitantes que são "de lá", fazem questão de dizer o "de cá" com uma raiva palestiniana, quase se agachando para o arremesso de calhaus, como se os quiséssemos arrancar de lá e trazê-los para servir em Lisboa e no Porto, no conforto totalitário dos nossos lares.

É como se fossem a terceira e mais estranha parte do território nacional: é Portugal e são os Algarves e depois ainda há Vila Real de Santo António, que nada tem a ver com os outros dois e tem muito orgulho nisso!

(Escusado será dizer que o facto de isto só acontecer comigo torna tudo ainda mais injusto.)

Miguel Esteves Cardoso