Momentos vitamina D

Há muitas coisas a que só damos o devido valor quando estamos à beira de as perder. Naqueles instantes (que sabemos) derradeiros, aperta-se-nos o peito numa dor tão pesada e muda, que difícil é não soçobrar à volúpia dessa pena e não nos acusarmos do pouco merecimento que atribuímos ao que era bom e que, pelos vistos, se está mesmo, mesmo a acabar.

Ainda que possa voltar. Como, por exemplo, o Sol.

Vem todos os dias o astro central da nossa galáxia. E todos os dias lá se vai embora, em tons de laranja mas já sem calor, caindo a Ocidente. Quando estamos quase a perdê-lo (ao sol) é quando lhe dão mais valor alguns dos nossos poetas, todos os fotógrafos amadores e mais uma quantidade de gente interesseira que se ufana de possuir um olhar de esteta e uma índole romântica.

Ora, o pôr-do-sol, em si, nada tem de romântico. Mas tem muito de melodioso, porque o pôr-do-sol é muito mais para ser ouvido do que para ser visto. Num excepcional dia de Verão, gosto muito do som do mar e da brisa quando a grande bola de luz começa a tombar, prolongando a sombra do chapéu-de-sol (entretanto fechado por não valer mais a pena) num comprimento absurdo sobre a areia morna. É a hora com que sonho por todo o Inverno, a hora do banho de sol, esse grande vivificante de todos os seres vivos e grande fornecedor de vitamina D. E, nesse momento breve, dou o devido valor à coisa que estou à beira de perder e de que, durante todo o dia, sem nexo, me tentei salvar o melhor que pude, escapando-lhe do calor insensato e do brilho que cega, recusando-me até a olhar para cima só para não ter de encarar, lá no alto, aquela estrela tão francamente anormal. É óbvio que a luz não me atrai.

Uma certa noite, descendo eu a Calçada do Desterro pelo lado da sombra (e dizem-me: mas qual sombra, se era de noite?), dei conta até que ponto pode uma pessoa distraída e de hábitos arreigados fugir instintivamente de uma lâmpada de um poste de iluminação como se fugisse do sol do meio-dia. Fossem seis da manhã e ouvisse eu estrepitar um bocadinho o candeeiro público, anunciando o seu desligar, que contente e revivificada me banharia naquela luz trémula e eléctrica, no preciso momento em que estava à beira de a perder.

Leonor Pinhão



Agora somos todos laranjas

A minha pele não dá para fazer sapatos e, como tal, ao contrário dos répteis e das cabras do meu país, não posso apanhar sol. Mesmo com bloqueador 100% Total Albino Power Plus, a única coisa que me salva o coiro, caso o exponha ao "sunny Portugal", é o mais poderoso corticosteróide. Tomado oralmente, claro, que isso das pomadas é para quem apenas gosta de brincar às queimaduras. Já nos anos 50, o grande dermatologista Juvenal Esteves dizia que não havia maior inimigo da pele.

Mas os bronzeados estavam tão na moda que muitos doentes deles chegaram a usar óleo Fula para melhor fritar o courato. Assim se perdeu o verdadeiro sentido da palavra "queimar": a mocidade exibia-se e proclamava-se "toda queimadinha" dos pés à cabeça, com grande orgulho. Esta mania continua através da praga das pomadas sociais-democratas que alarmantemente alaranjam os falsos veraneantes que por aí fluorescem. É o progresso: o pessoal já tem medo do sol — mas quer parecer queimado à mesma. No estrangeiro, o "tan" é tão popular que já se pode comprar aconselhamento psicológico para os casos mais graves, ditos "tanoréticos".

Aqui em Portugal ainda sobrevivem muitos tisnados e curtidos originais — TECOS para abreviar. Nos tecos, o "tisne" e a "curtição" estão tão entrelaçados que são impossíveis de separar sem dar cabo dos sapatos. Já diz o povo da praia: "Se não queres curtir, não te tisnes." Os meninos e as meninas da mamã deixam-se ficar à sombra para não enganar os engatatões e fazê-los perder tempo precioso.

A sinalética também funciona ao contrário: só tisna quem curtiu. A cor da queimadura evoca o fogo da paixão. E isto a tal ponto que as peles mais tisnadas dão a impressão de já terem curtido mais vinte anos do que de facto curtiram, afugentando os galãs e as galoas. Na realidade, os "banhos" de sol são como aqueles banhos de ácido sulfúrico das cromagens, onde mergulham as velhas jantes de automóveis, a ver se lhe descascam alguns aninhos. Ou estarei a confundir com o "peeling"? É assim que se diz descascar uma laranja em inglês. Sendo sabido que o efeito casca-de-laranja da celulite — sobretudo quando a carcaça é velha — é substancialmente minimizado quando se tinge a pele de laranja. Como na natureza.

Miguel Esteves Cardoso