Nem parecem deste mundo
Hei-de aprender a jogar bridge quando fizer 80 anos.
Penso que se trata de uma diversão encantadora para as tardes no Lar. E até para as noites. Mesmo que as enfermeiras e o pessoal auxiliar nos queiram meter na cama e fechar a luz logo a seguir ao telejornal, hei-de pedir aos meus netos que me tragam velas dissimuladas em ramos de flores, sempre que for dia de visitas.
E, à noite, à luz das velas, vou organizar sessões clandestinas de bridge com três companheiras de internato, escolhidas em função dos bons modos que exibam às refeições e do "fair-play" que lhes possa adivinhar nos pequenos gestos com que não deixarão de pontuar as banalidades do nosso quotidiano ambulatório. O bridge há-de ser uma paixão tardia e não me vão chegar papelinhos para anotar os pontos nem velas para alumiar as longas sessões. Pode ser até que seja expulsa do Lar e, depois, volte à normalidade.
Até lá, vou continuar igual. Incapaz de me arrebatar com um baralho de cartas.
E invejando os que se arrebatam, porque deve ser quase tão satisfatório como ir à missa, isto do ponto de vista da paz interior. Um baralho de cartas é um objecto magnífico, reconheço-o sem qualquer preconceito, pois tenho uma queda para apreciar o que me é alheio e, até, adverso. Eu, que nunca fui a uma tourada, sempre gostei de ler as crónicas tauromáquicas nos jornais, porque me encantavam os termos, de tão coloridos e vibrantes que eram, e as descrições das lides, pela paixão que lhes era aposta. Passa-se o mesmo com o baralho de cartas. Tenho alguns, mas aprecio-os mais pelo que têm impresso no verso do que pelo desenho dos naipes, embora prefira o naipe de paus aos outros, não faço a mínima ideia porquê. Passei horas da minha infância a jogar à bisca com a minha avó. Era a brincadeira preferida dela, não a minha. "Vá, baralha", dizia para me aliciar. E eu, obediente, baralhava, mas tão mal, tão desajeitada, que as cartas acabavam espalhadas no chão. E como nunca progredi nessa área, nunca progredi em área nenhuma.
Um dia vou gostar de bridge, eu sei. Vejo-os tão serenos e absortos a jogar, nem parecem deste mundo, são uma abstracção linda de observar.
Vai-me calhar bem, mas lá mais para o fim.
A perdição de ganhar ao bridge
O bridge é tão fascinante e tão fácil de aprender que não o ensinar é quase um favor que se faz a uma pessoa de quem se gosta. É de tal maneira absorvente e aperfeiçoável que ensiná-lo equivale a roubar-lhe dez anos de vida. Por outro lado, está-se-lhe a arranjar o melhor problema que por aí há.
O bridge é o único jogo que só tem graça quando se joga bem, a sério e sem ser a dinheiro. Num jogo a sério, todos os pares recebem e jogam exactamente as mesmas cartas. Ganha quem extrair delas o maior lucro ou o menor prejuízo.
O problema dos jogos a sério é haver sempre quem jogue mais do que nós: mais vezes, há mais tempo e com mais perícia. Aliás, são quase sempre as três coisas simultaneamente. O bridge é cativante porque, antes de jogar as cartas, é preciso tentar adivinhar o que vai acontecer com elas sem ver 75 por cento delas e tendo apenas uma notícia simbólica e aproximativa dos 25 por cento do parceiro. Depois, é preciso prometer ganhar um número certo de vazas. Quem passa ou desiste também faz uma promessa negativa já que é castigado sempre que perde uma oportunidade de ganhar.
Neste leilão tem de se usar uma linguagem simples de promessas (que promete ganhar sete vazas se o trunfo for paus) até aos "7 sem trunfo" (que promete ganhar todas as vazas). A partir deste pequeno número de lances, os jogadores têm construído sistemas complexos para tentar comunicar e avaliar as 26 cartas na posse de um par e as 26 na posse dos adversários. Não existe - e nunca existirá - um sistema de descrição que permita fazer uma estimativa exacta.
No entanto, os sistemas têm-se tornado cada vez mais mais rigorosos e este aperfeiçoamento constante é uma das coisas que torna o bridge irresistível.
É um problema de comunicação que é irresolúvel mas superável. Quem diz pares diz casais: às vezes conseguem-se resolver as deficiências comunicativas na mesa/cama. O leilão é o namoro em que se promete e procura saber o que tem o outro. O cartear é ter de passar à acção, mesmo quando se mandou e recebeu os sinais errados.
Parece giro? Não se meta nisso!