Oh, que pena, a igreja está fechada. E por ali ficamos, imóveis e desconsolados no adro, de olhos fixos na porta, à espera de um milagre. Está fechada, não se vê que está fechada? Voltaremos amanhã, a horas convenientes. Igrejola, igrejinha, igrejica, não perco uma. Conheço muitas e gosto de todas. Não há igrejas feias. Mesmo as modernas, de traços desdenháveis para um público mais exigente, acabam por reflectir o gosto e as ambições, ou seja, a gloriosa temporalidade da comunidade a que servem e, por isso mesmo, são retratos acabados do grande trânsito humano, olhem, bem feitas as contas, o que temos de mais certo. Santuário! Por favor, não nos aborreçam com vicissitudes e, sobretudo, não nos venham buscar para onde não queremos ir. Abençoado seja quem te inventou, igreja, templo de refúgio, guardião do silêncio, logro maravilhoso onde nada de mal pode acontecer a ninguém. Pelo menos é o que nos fazem acreditar com a vossa austeridade que, pensando melhor, é apenas a nossa austeridade, forçada pelo temor a sair do seu reduto e a impor-se como gentil polícia de nós próprios que, de tão enlevados, nem damos pelo truque. Gostamos de truques, sim. Não da indecência da confissão, muito menos da virtude insonsa da água benta, mas da "beleza dos nossos pecados" e de lhes sobrevivermos, um minuto que seja. As igrejas são, pela sua natureza, muitíssimo mais e melhor apreciadas pelos agnósticos do que pelos místicos. Sempre que uma pessoa desprovida de fé entra numa igreja os anjos batem as asas com alegria, dão voltinhas ao campanário e fazem "ih, ih, ih". Porquê? Por que está automaticamente posto de parte o lado interesseiro. Não há negócio. Não há cá coisas como "quanto me custa a remissão?" ou "dá-me a minha alma de volta", porque a alma com que se entra é a alma com que se sai. E não custa nada. Um teatro vazio, por exemplo, provoca o mesmo efeito de uma igreja cheia. E vice-versa. Uma igreja vazia provoca o efeito de um teatro a abarrotar. Tudo tem a ver com a representação e com o texto que podemos, ou não, conhecer de antemão. É esse o frémito, o do silêncio antes da palavra. Oh, que bom, a igreja está aberta.
As igrejas são a Igreja
Tal como a Igreja Católica leva décadas a reagir aos tempos que correm, também eu ando atrasado em relação à Igreja Católica. Não digo que ainda me cheira aos autos-de-fé da Inquisição, mas, para mim e para outros judeus, continua queimada de mais por violências recentes para se poder respirar fundo. Para mais, o Vaticano II, apesar de tímido e óbvio, continua a ser contestado e ameaça até retroceder para os níveis de desconforto e intolerância anteriores. Enquanto me sinto bem com as pessoas da Igreja crentes e clero a antiguidade dos edifícios faz com que seja mais difícil esquecer-me do que se pregou dentro delas e do sofrimento que isso causou. Mais concretamente, quando entro numa igreja católica incomoda-me sempre a celebração do sofrimento que lá se representa, desde o nível comezinho da representação pictórica (a figura de Jesus crucificado e de outros mártires; o São Sebastião) até à abstracção metafísica do "sangue e do corpo de Cristo" da eucaristia. Fica-se com a ideia que são bem recebidos todos aqueles sacrifícios e sente-se que, no contexto de tanta ascese e renúncia, o próprio acto de viver constitui um pecado. Bem basta a culpa que já temos sem estar a puxar também pela culpa de não sofrer mais. Sabe-se que é grande a distância entre a severa doutrina da Igreja e o carinho e a humanidade do trabalho pastoral. Numa igreja mais vazia, essa distância é ampliada e aquela majestade pública surge de forma esmagadora, quase desumanizada na sua ostentação, senão na sua humaníssima hipocrisia. Mesmo nas igrejas mais pequenas e rurais, é difícil encontrar a escala humana, com o conforto e o à-vontade que são próprios de quem gosta de rezar tu-cá-Tu-lá com Deus. A atmosfera de castigo e de penitência de absolvição através do sofrimento convida as pessoas a sentirem-se humilhadas só por não serem divinas. Como se houvesse a vontade de ser como Deus ou que vem dar ao mesmo - a pena de não conseguir. Entre o medo de Deus e a vergonha de se ser humano há um parentesco infernal e é por não gostar de ser lembrado disso que evito entrar em igrejas. Como até o Diabo não foge da dita.