O DOM da palavra tem muito que se lhe diga. E pouco que se lhe desconte. São aflitivas as pessoas que falam bem em público e que conseguem fazê-lo minutos a fio sem um tropeção, sem um silêncio, sem um sintoma de hesitação. Pessoalmente, desconfio dos eloquentes. De onde lhes vem a verve? E para que lhes serve, senão para rebaixar os demais com a sua maquinal destreza tão vazia de humanidade? Se não há, como acredito, linguagem fora do pensamento, pensarão eles como falam, sempre a direito? O problema da eloquência é exactamente o mesmo da lisonja. Exige ser pago na mesma moeda. Um lisonjeador o que mais quer é ser lisonjeado e um eloquente o que mais quer é um público tecnicamente apto para lhe proporcionar a próxima deixa. E, embalado, lá vai ele outra vez. Se, porventura, já privaram com pessoas eloquentes conhecem bem quanto custa suportar a baixeza dos seus truques. É da maior conveniência desmascará-los. Um eloquente é sempre um vaidoso apaixonado por si próprio. Eles não falam para nós - é preciso ter isso em consideração -, falam porque gostam de se ouvir. E, ouvindo-se, julgam que o seu deleite é o nosso deleite (nada mais falso). Um eloquente parte sempre do princípio errado de que o seu auditório é menos qualificado do que ele. E esta é a razão porque não se calam e não dão conta do enfado que provocam com os seus insuportáveis "não obstantes" e "na realidade" e com os seus sorrisinhos de auto-satisfação sempre que terminam, sem se engasgar, uma frase de construção mais intrincada. Na realidade, há muitas maneiras de levar um eloquente à desistência e, se for preciso, à loucura. A primeira é corrigir-lhe a gramática, a segunda é começar a fazer palavras cruzadas e a terceira é interrompê-lo, sistematicamente, com interjeições tão desequilibrantes como "ah, pois". O "ah, pois" é a melhor arma dos lacónicos. E funciona sempre porque um eloquente exige a rendição do auditório e qualquer som que não seja o seu é encarado como terrorismo ou, mesmo, falta de respeito. A eloquência é, regra geral, uma grande maçadoria. Há lacónicos que têm o dom da palavra, mas têm ainda um bom-senso maior. Isto, sim, é um atributo.
Fala com eles
DE ONDE vem a ideia geral, nem errada nem certa, que se deve desconfiar de quem tem o dom da palavra? Pertence à mesma duvidosa ordem que o elogio do silêncio e das virtudes morais de falar pouco. O fala-barato é sempre visto como um aldrabão em que a facilidade verbal é inversamente proporcional ao valor do que diz. Veja-se o êxito que alcançou recentemente nos Estados Unidos um curtíssimo livro (mais contra do que) sobre o "bullshit". Ficou mais uma vez demonstrado que discursar acerca da banha da cobra é mais fácil e menos lubrificante do que a própria banha da cobra - sobretudo quando se diz pouco. O dom da palavra tanto dá para o mal como para o bem - se é assim que se insiste em falar - mas é, infelizmente, muito mais raro do que se pensa. O estilo da grande maioria das coisas que se dizem não é logorreico e oco: é mal e pouco. Cultivar a incapacidade de expressão é tão perigoso como qualquer outro louvor do nobre selvagem que o maravilhosamente loquaz Rousseau não era. Pelo mesmo caminho se acha inocência na ignorância e pureza na mais completa estupidez. É sempre de desconfiar de quem ataca uma actividade que é incapaz de praticar: não é fala-barato quem quer. Mesmo estudando muito, como fazem os advogados que nasceram lacónicos, sai sempre muito caro para quem não tem jeito. E os resultados - a desconfiança e o desprezo do público visado - são ainda piores. Ando a ler um dos grandes mestres da verborreia aplicada - o Plínio mais jovem e as cartas que escreveu - e estou consciente de quanto podem irritar cem palavras quando um simples "sim" ou "não" teria bastado. Mesmo assim, como ele próprio diz quando descreve a apetitosa casa na Toscânia, quem se concentra nunca se alonga. É mentira, claro, mas dá gosto considerá-la e discuti-la. Pelo menos comparado com o silêncio, com a inexpressividade e com aquele "falar caro" que é próprio de quem preferiria ficar calado. Só passados milénios é que se vem a amaldiçoar os que se abstiveram de pronunciar-se e o registo caseiro do mais reles escriba é honrado como merece. Querer e saber falar, independentemente do que se venha a dizer, é sempre um prazer para quem ainda não desistiu da sociedade.