A vida é uma tradução
A vida é uma tradução. Posto assim, o conceito pode parecer erróneo, abusivo e até parvamente simbólico. Melhor será, no entanto, concordarmos com a evidência e não lhe resistir. Do momento em que nascemos até àquele outro de que nem vale a pena estar a falar, passamos todo o nosso tempo a traduzir. A traduzirmo-nos a nós e a traduzirmos os outros. O objectivo supremo é o da compreensão. À partida, a nossa língua portuguesa é tão estrangeira como as demais. Depois, na primeira infância e graças ao esforço de mil tradutores, arreiga-se como um hábito e disfarça-se toda ela em naturalidade. Chama-se traduzir ao processo de converter uma linguagem em outra e não há maior milagre do que este à face da Terra. Há pessoas eruditas que dizem que só lêem os autores tais e tais na língua original para não perderem nada da essência semântica de tais e tais talentos. Enganam-se a si mesmos e, sobretudo, desmerecem-se, julgando que se valorizam porque ostentam o conhecimento de uma língua estranha. Felizmente, o cérebro tudo nos traduz mesmo quando não queremos. É a vaidade que nos faz julgar que somos os responsáveis intelectuais por qualquer nível satisfatório de apreensão. Porque uma coisa somos nós, outra coisa é a nossa vaidade e outra é o nosso cérebro, sempre disposto a pregar partidas.
Por tudo isto, não há ocupação mais humana do que a de tradutor. É certo que não é bem paga e nem sequer muito considerada socialmente, mas por ser tão primordial e solitária reveste-se de uma carga dramática sem par. Traduzir um texto, revertê-lo de uma linguagem para outra, torná-lo compreensível com códigos que não lhe pertencem é obra bíblica, divina e, por absurdo, por contradição, é obra unipessoal. Todas as traduções têm os seus encantos. A simultânea porque exige descaramento, a livre porque não se atém às palavras do texto original (e tudo o que não se atém, não se atém...), a literal porque se atém e, atendo-se, torna frequentemente incompreensível o registo original e dá que pensar nestas coisas todas. Traduzir não significa trair. Aliás, não significa nada. Traduzir é como o respirar. Acrescido de uma inevitável ânsia de renovação.
Quanto é isso, traduzido em ignorância?
É fado dos bilingues estarem sempre a ser convidados para traduzir de uma língua para a outra. Costumam recusar - e não é por preguiça. É por causa de uma lei da tradução que é tão injusta como agonizante: a chamada Penalização Espertalhona. Para democratizar o conhecimento e proteger a ignorância, esta penalização aplica-se proporcionalmente: quanto mais bem se conhece uma língua, mais difícil é traduzi-la. Temos assim que me esmifro todo para traduzir um pequeno poema de inglês para português, mas vingo-me nas línguas que mais violentamente desconheço (o hebraico e o japonês por exemplo), que traduzo lindamente, com o maior dos desplantes e disparates. Na tradução, saber é não poder e poder é não saber. Quando se sabe é tão dolorosa a consciência do que se perde - e, mais grave ainda, do que se acrescenta - que mais vale estar quieto. Se cada língua já é difícil para ela própria (e, no caso da literatura que vale a pena, consegue erguer-se por tirar partido dessas dificuldades) fazer falar uma através de outra é uma trabalheira destrutiva e angustiante. O corolário dessa fatalidade é óbvio: quanto mais bem escrito numa língua, mais mal escrito terá de ficar na outra. Quanto mais se estiver a dizer, menos se dirá. E quanto menos, mais. A Penalização Espertalhona não perdoa. A bem ver, só deveríamos traduzir maus livros e coisas que já na língua original não tinham ambição nem importância. Quanto melhor conhecemos uma língua, mais as traduções dela são insuportáveis. Quando é para ler, não faz mal porque se lê no original. Mas quando é para escrever, é o estar-se sempre a ler no original que nos parece música e faz sofrer com a macacada da língua segunda. A tradução é uma conveniência: existe porque não conhecemos outras línguas. É filha da ignorância e vive dela. Há que reconhecê-lo e engoli-lo. Paciência. O pior que se pode fazer é confortar e celebrar essa ignorância através das anedotas do costume, a começar pelas tais traduções que "até são melhores do que o original". São exactamente como os espumantes portugueses muito específicos que são melhores do que o "Champagne" muito em geral. Bebem-se mas não se comparam.