Cavaco Silva vai ter dois mandatos dentro do próximo mandato: um primeiro, em que lidará com José Sócrates, e outro em que lidará com Pedro Passos Coelho. Mais, a parte do mandato em que lidará com Passos Coelho deverá ser mais extensa do que aquela em que ainda lidará com José Sócrates.
Ou seja, a questão política maior não é tanto como se relacionará Cavaco Silva com José Sócrates, mas sim como se relacionará Cavaco Silva com Pedro Passos Coelho.
A relação com José Sócrates parece-me fácil de prever. A indignação de Cavaco Silva na noite das eleições com a campanha de ataque pessoal que lhe foi feita tinha destinatário muito para lá de Manuel Alegre. A sublinhada dicotomia entre dois modos de fazer política e a amplitude que Cavaco Silva concedeu a essa dicotomia, nomeando os que "prometem o que não podem cumprir" e os que "não falam verdade ao povo", dá a entender o conceito ético-político em que o Presidente da República tem o primeiro-ministro.
A relação entre Cavaco Silva e José Sócrates será uma relação de tolerância zero. Será também uma relação mais tensa, porque a magistratura ativa só pode significar que o Presidente falará, em público, de modo mais nítido do que até hoje, impondo custos políticos a José Sócrates que até hoje não impôs.
Cavaco Silva tem uma questão de perspetiva histórica que, certamente, o incomoda. Quando terminou a sua década como primeiro-ministro, Mário Soares ter-lhe-á dito "a década de ouro que ambos fizemos". Hoje, Cavaco Silva tem a noção de que, se Sócrates prosseguir muito mais tempo, no final do mandato apenas poderá dizer a Sócrates "a década de lata que fizemos". Cavaco Silva não quer terminar a sua carreira pública com tão maus resultados ou associado a eles.
A relação de Cavaco Silva com Passos Coelho dependerá muito da agenda governativa do futuro governo e da qualidade do governo que for formado. Uma agenda demasiado turbulenta no plano social não terá vida fácil com Cavaco Silva. Como Pedro Passos Coelho precisará de reunir o máximo consenso político e social possível, a começar pelo Presidente, é crítico que antecipe com minúcia o pensamento de Cavaco Silva, para que um plano reformista inevitável não acabe por ter o Presidente contra.
A qualidade do governo será também decisiva. Passos Coelho terá de motivar Cavaco Silva. A peça-chave será o ministro das Finanças. Eduardo Catroga, algum economista mais novo de fortíssima personalidade? Depois, quatro ministros-chave, todos eles com altíssima capacidade de gestão: na Saúde, na Justiça, na Educação e nas Obras Públicas. Finalmente, um governo sem dependências 'aparelhistas' do PSD, matéria que o Presidente conhece como ninguém e rejeita com intensidade. A corte de Passos Coelho será determinante para a sua credibilidade em Belém.
A distância que existe entre os dois poderá ser benéfica, colocará a relação num plano racional e de Estado. É tão importante que o Presidente não se deixe aprisionar pelo PSD, como o PSD não se deixe aprisionar pelo Presidente.
P.S. - Com este meu artigo, termino a minha colaboração regular no Expresso ao fim de 21 anos.
Texto publicado na edição do Expresso de 29 de janeiro de 2011