Cavaco Silva tem uma pergunta recorrente nestas presidenciais: como chegámos aqui consigo Presidente?
O subconsciente desta pergunta é lisonjeiro para Cavaco Silva: aqueles que fazem a pergunta creem que poderia e deveria ter sido mais interventivo e que essa sua intervenção teria evitado a situação em que Portugal se encontra.
Para muita gente, a única solução política era e é Cavaco Silva, no quadro de uma leitura presidencialista do nosso sistema político. No fundo, seria um alívio se Cavaco Silva governasse Portugal nesta crise, diretamente ou nomeando alguém da sua confiança.
Não é de excluir que Cavaco Silva tivesse hoje mais votos como candidato a primeiro-ministro do que como candidato a Presidente da República. O perfil de estadista experiente, de homem íntegro, de decisor competente e de líder distante fazem de Cavaco Silva o D. Sebastião ideal na crise moral e económica que vivemos. Ora tudo isto é muito lisonjeiro para Cavaco Silva mas não leva a lado nenhum: o centro de gravidade do semipresidencialismo português é o Parlamento ou, em caso de maioria absoluta, o Governo. Partir de outro pressuposto é muito estimulante intelectualmente, mas pura fantasia política.
Portugal chegou até aqui porque o poder estava onde a Constituição queria que estivesse: no Governo, entre 2005 e 2009, e no Parlamento, desde Outubro do ano passado.
Poderia Cavaco Silva ter demitido o Governo, entre 2005 e 2009? Poder podia, mas o Parlamento devolver-lhe-ia o mesmo primeiro-ministro. Poderia, então, ter dissolvido o Parlamento? Poder podia, mas o eleitorado devolver-lhe-ia o mesmo primeiro-ministro. E, depois das eleições de há quinze meses, poderia ter abortado a legislatura, demitindo o Governo ou dissolvendo o Parlamento? Poder podia, mas a situação ficaria ainda mais esfrangalhada do que está hoje. E poderia ter nomeado um governo de iniciativa presidencial? Poder podia, mas não durava mais de cem dias, como Lourdes Pintasilgo ou Nobre da Costa, nos anos 70.
A verdade é que nem o Parlamento nem o povo deram margem de manobra ao Presidente.
Cavaco Silva esteve para o Governo como um médico está para um doente que corre perigo de vida mas que não pode ser operado, porque a operação apenas vai agravar o risco de vida do doente.
Conheço bem esta situação e ela ilumina o mandato de Cavaco Silva. Com Portugal nos cuidados intensivos, remover Sócrates, é disso que se trata, teria sido uma operação com risco superior ao da manutenção de Sócrates no poder.
Podemos imaginar a angústia de Cavaco Silva, perceber que o estado de saúde de Portugal era "insustentável", como chegou a alertar, e não poder operar o doente. A sua intervenção, no entanto, serviu para evitar males maiores, desde logo juntando PS e PSD no último ano.
Com a longa convalescença que espera Portugal e com a crise de qualidade da política, será sensato manter por perto o último grande senhor da política portuguesa. Veremos que espaço de manobra o povo lhe dará.
Texto publicado na edição do Expresso de 23 de dezembro de 2010