Escrevo no início da semana, sem saber o que decidiu o PSD sobre o orçamento. É, no entanto, para mim, evidente, desde o princípio, que o PSD deixará passar o orçamento, por razões simples: primeira, porque sem orçamento os portugueses iriam sofrer ainda mais do que com o orçamento que o Governo propôs e não está no código genético do PSD tolerar isso; segunda, porque sendo Pedro Passos Coelho uma personalidade tipicamente racional nunca deixará que a situação passe de um risco grave, mas conhecido, para um risco desconhecido e fora do seu domínio; terceira, porque esta dramatização é um investimento político muito inteligente de afirmação do líder do PSD e de diferenciação relativamente ao PS.
Desde há meses que o tema não é se o PSD deixará passar ou não o orçamento, nem se tem margem de manobra ou deixa de ter, mas sim qual a capacidade política do PSD para forçar o Governo a esclarecer a verdade e a prestar contas sobre a execução orçamental de 2010 e para Portugal ter um orçamento para 2011 o menos mau possível.
É por isso que não entendo a pressão assustada e assustadiça que se abateu sobre o PSD, da qual apenas resulta um acréscimo de fôlego e de margem de manobra para este Governo em fase terminal de credibilidade.
Realmente, é surpreendente que se peça a Passos Coelho que aprove de cruz e sem ver um orçamento que desconhece, a ser feito por gente que toda a gente conhece.
Gente que não apresenta sequer contas ao Parlamento de como está a gerir os dinheiros do Estado. A situação é tão grave que não me parece descabido perguntar, ponderando os poderes do Presidente da República de demissão do Governo: há "regular funcionamento das instituições democráticas" quando um Governo não esclarece o Parlamento, na véspera de um debate sobre o Orçamento do Estado e apesar das insistências, sobre qual a situação financeira do Estado? Os deputados vão aprovar um orçamento sem saber qual a situação real das contas públicas? Isto é verdade? É esta a qualidade da nossa democracia?
Há em Portugal uma nova doença, a doença dos timings. O que interessa é o timing, não o essencial em si mesmo. O calendário substitui os valores. Tudo é tático, tudo é hoje.
Esta doença também aflorou tempestuosamente em algumas elites quando o PSD apresentou o projeto de revisão constitucional. Em vez de se apoiar uma iniciativa corajosa para recompor o desgraçado futuro da economia portuguesa e do nosso agonizante Estado social, não, discutiu-se, claro, o timing. Acresce, a favor dos 'timinguistas', a autossatisfação de se verificar a descida do PSD nas sondagens, como se fosse possível ser imediatamente popular quando se diz às pessoas o que elas não querem ouvir, mas que é essencial que ouçam: por exemplo, não haverá Serviço Nacional de Saúde justo e capaz se se insistir no "universal e tendencialmente gratuito", isto é, que os dramáticos impostos de uma empregada de balcão de uma mercearia de Condeixa paguem as consultas médicas do sr. Américo Amorim.
Reconheço a Passos Coelho a ética de não querer ir a eleições mentindo e de querer legitimar o que pretende fazer. E louvo-lhe o sentido de risco. Não sei se consegue ganhar sendo tão frontal. Mas sem ética a política é uma vergonha e sem risco uma maçada, como dizia Sá Carneiro.
Texto publicado na edição do Expresso de 23 de outubro de 2010