António de Almeida

Serralharia financeira

Seria preferível denominá-la serralharia financeira. Não tem a mesma nobreza que a engenharia, mas desenrasca muitas situações.

António de Almeida (www.expresso.pt)

Foi há alguns anos. Logo a seguir à euforia da revolução de 1974, os lusitanos começaram a sentir o efeito das crises, que obrigou, logo em 1977, a pedir a intervenção do FMI. Desconhecedores das regras da madrasta economia e do funcionamento dos mercados, pensavam que o bem bom se conseguia com menos trabalho e mais consumo, ainda que liquidado a crédito.

Mal informados, pensavam que, ultrapassada a crise do início da década de oitenta, com a entrada na então CEE, as crises seriam remetidas para o armazém do esquecimento. O novo homem português, medido pelo talento de uma excecional geração de futebolistas, e pelo natural crescimento do PIB, alavancado pelos fundos logo a seguir à entrada na CEE, aumentaria, como aumentou, o edílico bem bom. Puro engano. As crises são sempre diferentes, mas igualmente preocupantes.

Antes da sua privatização, o sistema bancário atravessava um mau momento. Conforme a orientação ideológica, assim se identificavam os responsáveis. A crise internacional, sempre utilizada quando os lusitanos entrem em dificuldades. A herança da banca privada, de que a falta de fundos de pensões é um exemplo. Os desmandos da revolução, quando, em 1975, as comissões administrativas se reuniam semanalmente no Banco de Portugal para fazerem uma gestão coletiva da banca. A excessiva intervenção política na gestão do sistema financeiro. A politizada escolha de muitos gestores, medida pelo cartão do partido, por amizades ou interesses.

Meia dúzia de bancos corria o risco de fecharem o exercício com prejuízos. Não havia recursos para garantirem a cobertura dos citados prejuízos. O Governo da altura e o Banco de Portugal, com naturalidade, mostravam preocupação. Só que os portugueses nunca se atrapalham e encontram sempre 'soluções'. Com a lusitana criatividade, recorreram à pomposamente denominada engenharia financeira. Tal como no milagre das rosas, transformaram prejuízos em lucros. Desse modo, deram uma imagem de solidez, de capacidade e de confiança no futuro. Um dos bancos com prejuízos detinha no seu balanço uma valiosa coleção de moedas.

Os engenheiros financeiros engendraram uma modalidade que permitiu, próximo do final do ano, a venda da coleção a outro banco do Estado com um preço confortável. Simultaneamente, comprometeu-se a adquiri-la durante o mês de janeiro seguinte. Esta criativa engenharia financeira permitiu fechar o exercício do banco público com lucro e, pelo menos a curto prazo, diminuir as preocupações. Noutros bancos adotaram-se outras criativas engenharias, tal como a 'renegociação' de crédito malparado, com um confortável período de carência e a inerente recuperação das provisões constituídas. Todos abriram garrafas de champanhe pelos resultados conseguidos. No entanto, a questão de fundo ficou na mesma.

A engenharia é uma ciência abrangente que utiliza conhecimentos matemáticos, técnicos e científicos. Nela não cabe a engenharia financeira, na qual, muitas vezes, o que pesa é a técnica do ilusionismo. Por essa razão, seria preferível denominá-la de serralharia financeira. Não tem a mesma nobreza, mas desenrasca muitas situações.

Texto publicado no caderno de economia do Expresso de 16 de outubro de 2010