Na manhã do passado dia 2, decidi ir ouvir Fernando Ulrich. Concorde-se ou discorde-se, é daqueles gestores bancários que não enrola as respostas. O meu Amigo José Amaral informou-me do agravamento do estado de saúde do Ernâni. À hora do almoço fui informado de que nos tinha deixado. Lutou durante anos contra o cancro. Nunca transmitiu revolta ou desânimo. Um exemplo para quem, nesta curta passagem pela Terra, se tem de debater contra o cancro. Os leitores não me levarão a mal que dedique esta crónica ao grande Português que foi Ernâni Lopes.
Trabalhava em Moçambique, no Instituto de Crédito, quando o então governador-geral me incumbiu de vir a Portugal contactar os principais bancos. Já nessa altura, quando se pensava em grandes obras, como a estrada Centro Nordeste, o problema era o financiamento. Coube-me, nos meus 35 anos, enfrentar nomes sonantes da banca portuguesa. No Banco de Portugal fui recebido por Ernâni Lopes. Não foi uma reunião simpática, mas ele, com a sua visão, sabia que aquele investimento, no ano 1973, tal como o de Cahora Bassa, tinha fortíssima probabilidade de se tornar em mais um fardo para os contribuintes portugueses.
Nesse ano, não pensava que, tal como Ernâni, algum dia viesse a ser integrado no armazém de quadros que o Banco de Portugal mantinha na Almirante Reis, onde me senti o mais inútil cidadão, nem que com ele viria a colaborar. Aconteceu em 1983 no Governo do Bloco Central. Foram 30 meses de convivência com o FMI e de preparação da entrada de Portugal para a CEE. Exigiu intensa atividade, num ambiente de grandes dificuldades, com muito stresse, enorme austeridade e grande coesão da equipa, da qual faziam parte Alípio Dias, Martins dos Santos, Cristina de Sousa e António Marta. Com o apoio de Mário Soares, que nunca nos faltou, e a liderança, competência e o sentido de defesa dos interesses de Portugal, de Ernâni, o trabalho com o FMI não representou nenhum drama, foi benéfico para Portugal e, juntamente com os fundos da CEE, ajudou ao sucesso da governação na segunda metade da década de 80.
Ernâni era um Homem de fé. Um trabalhador incansável. Um político com um sentido de serviço público. Um cidadão apaixonado pelo seu país. Um democrata. Sabia que nem sempre tinha razão e que não sabia tudo. Com ele, as opiniões dos seus secretários de Estado eram livres. Nunca mostrava má cara quando dele discordávamos. Sabia delegar, ao ponto de entregar a este 'croniqueiro' a defesa no Parlamento da Lei de abertura da banca ao sector privado. Era um Amigo e deixa saudades a quem teve o privilégio de com ele lidar de perto. Da última vez que estive com Ernâni, numa cerimónia no ISEG, a cor do seu rosto já não enganava o progresso da doença, mas a sua preocupação era o estado de saúde do amigo António.
Em 1983, Portugal atravessava um momento difícil. Pediu-se ao FMI que nos ajudasse. A austeridade foi dura. Ernâni Lopes pensava apenas no país. Não executava qualquer tática de continuar no poder. Em 2010, Portugal está novamente em crise. Não se deseja a ajuda do FMI. A austeridade vai ser a doer. Que o exemplo do Ernâni Lopes, na sua verticalidade, simplicidade e coragem como verdade e não como estratégia, sirva de estímulo aos nossos atuais políticos.
Texto publicado no caderno de economia do Expresso de 11 de dezembro de 2010