Os primeiros-ministros não costumam fazer autoavaliações negativas, mas quando António Costa enaltece este como "o melhor Orçamento que já apresentou ao Parlamento", está (também) a dizer-nos que os anteriores não foram melhores porque teve de os negociar com os ex-parceiros de 'geringonça'. Este, pela primeira vez, é genuinamente o seu Orçamento do Estado (OE). E como só foi negociado depois de apresentado, politicamente faz toda a diferença: com uma negociação prévia, como na era da 'geringonça', seria mais difícil a Costa e a Centeno manterem a "opção" pelo excedente orçamental que o Bloco de Esquerda classifica como uma "obsessão".
Aqui, as diferenças políticas manifestam-se no seu esplendor, e Costa regressa à quadratura do círculo que construiu ao longo de quatro anos: a concretização de uma impossibilidade política. Análise de um debate de cinco horas em três grandes pontos.
1. O orçamento que a direita nunca conseguiu ter, viabilizado pela esquerda
António Costa teve frases nas suas intervenções que podiam ter sido ditas por Cavaco Silva quando há mais de 20 anos criticava os governos de António Guterres exatamente por não fazerem o que o PS está a fazer agora. Defender políticas anticíclicas - poupar em tempos de bonança para ter folga na tempestade - é suficientemente keynesiano para não ser considerado de direita. Mas com a "opção" pelo superávite - que Rui Rio começou por defender quando chegou à liderança do PSD -, Costa esvaziou (ainda mais) o discurso da direita ao longo dos últimos 15 anos, pelo menos. Pode ser alvo de criticas, mas não a de que deixou "o país de tanga" (como ouviu Guterres) ou que levou Portugal à bancarrota (como ouviu Sócrates). É o corolário da viragem de perceção que Costa quis desde o início dar ao PS.
Joana Mortágua acusaria Costa de "obsessão" pelo excedente orçamental (quem tinha uma "obsessão pelo défice" era uma ministra de direita, Manuela Ferreira Leite), e o primeiro-ministro responderia com uma frase que é todo um programa: "O excedente não é uma obsessão, é uma opção".
O caminho neste sentido tinha sido justificado pelo primeiro-ministro no discurso de abertura, com uma pitada de veneno: a "consolidação prosseguida" é o resultado de "uma responsabilidade partilhada" - com a esquerda, entenda-se, que considera um défice de 3% uma imposição inaceitável de Bruxelas, mas acaba a deixar passar estas contas excedentárias. Segundo Costa, este "é o momento para fazer o esforço" no sentido de "poupar recursos" para quando for preciso aplicar "uma política anticíclica" e fazer face a uma crise. São as lições de 2011 revistas e atualizadas: Sócrates tentou aplicar uma política anticíclica quando já tinha o défice descontrolado.
Daí que Costa tenha conseguido viabilizar mais uma vez à esquerda um orçamento com os pressupostos da direita. Mesmo com excedente, na sua opinião o OE "responde com equilíbrio às necessidades" na saúde, nas forças de segurança, nas prestações sociais. E "é o melhor porque vai além da reposição dos rendimentos", afirmou, sem perder de vista "a necessidade" de o país se libertar "da elevada dívida pública" que nos últimos anos já aliviou 2 mil milhões de euros em juros.
2. Placar o Bloco e responder a Marcelo
No debate, António Costa manteve a estratégia em marcha há meses, de ser mais macio para o PCP do que para o Bloco. A maneira como placou Catarina Martins depois de esta ter dito que não negociar previamente o OE tinha sido "um erro" foi eloquente: "Poderá dizer que a culpa foi nossa, eu posso dizer que a culpa foi sua." O argumento de Costa para não fazer acordos escritos prévios teve, em parte, a ver com as exigências nas leis laborais que os bloquistas sabiam que os socialistas jamais iriam aceitar.
Para Jerónimo de Sousa, continuou com tudo em aberto num tom sem a mesma acidez: Nenhum orçamento "resolve todos os problemas", disse aos comunistas. Mas garantiu aproximar-se das posições da esquerda, prometendo aumentos na Função Pública de 1%, no mínimo. Embora as negociações na especialidade com base nos pressupostos negociados com os partidos nos últimos dias não garantam a mesma estabilidade dos acordos escritos, Costa aposta que "o trabalho profícuo continuará".
Mas logo na intervenção inicial o líder socialista teve uma passagem recuperada do discurso de tomada de posse que serviu como uma luva para responder às críticas de Marcelo Rebelo de Sousa no discurso de Ano Novo - que disse que um Governo sem maioria absoluta estava obrigado a dialogar e que os portugueses tinham votado na mesma solução.
"O claro reforço eleitoral do PS não dispensa o Governo do dever de promover o diálogo parlamentar", autocitou-se o primeiro-ministro. Para depois colocar o ónus no BE e no PCP: "A ausência de uma maioria absoluta impõe aos partidos que têm sido - e queremos que continuem a ser - nossos parceiros o dever acrescido de contribuírem de modo construtivo para o sucesso deste diálogo ao longo de toda a legislatura."
Cecília Meireles, do CDS, resumiria este quadro parlamentar de uma forma muito simples: "O novo voto a favor é a abstenção".
3. A direita presa aos impostos e "o pensamento mágico" de Rio
O líder do PSD, que por diversas vezes se manifestou favorável à existência de um excedente, teve de encontrar um caminho alternativo, uma vez que o discurso das contas certas se tornou impossível. Rui Rio, que no programa eleitoral propunha uma enorme redução dos impostos, chegou a sugerir uma baixa da carga fiscal, mesmo que "não fosse uma redução drástica" e fosse "só um bocadinho" e pouco mais.
Acusou Costa de cobrar mais 1700 milhões de euros em impostos desde 2018 e insistiu no tema da “discrepância” apontada pela Unidade Técnica de Apoio ao Orçamento (UTAO): “Onde estão os 590 milhões de euros? Não é o Wally, são os 590 milhões”. Pouco convincente nas respostas sobre a fiscalidade - refugiando-se no crescimento económico - o socialista atacou o recandidato a líder do PSD com uma das frases da tarde: "PSD quer mais investimento, menos impostos e maior excedente orçamental. Isso é o pensamento mágico."
No CDS e na Iniciativa Liberal o mantra continuou a ser os impostos. Cecília Meireles acusou o Governo de cobrar cinco vezes mais impostos do que poupa em juros da dívida. E João Cotrim de Figueiredo perguntou se Costa ia continuar a aumentar a carga fiscal. "Então não", respondeu-lhe o primeiro-ministro que não teve dificuldade em fintar uma direita fustigada pelas crises internas.