Opinião

A grave crise no Douro

Um governo neoliberal assume que não deve intervir, ou se intervier que seja só para reduzir o volume dos protestos. Um governo incompetente dissimula porque não sabe como pode ajudar quem está necessitado.

A Região Demarcada do Douro vive tempos difíceis. Tudo porque os produtores assistem a uma redução progressiva do preço pago pelo mosto e porque toda a economia do setor se encontra desequilibrada há quase três décadas.

Em 2007, era eu membro do governo, num conselho de ministros conversava com o primeiro ministro sobre mais uma possível manifestação na Régua. Ele perguntou sobre as razões e eu respondi que era a quantidade de “benefício” que estava em causa. Um ministro importante da altura, ouvindo, interveio e disse ”o problema deste país são os benefícios, os subsídios, assim não saímos da cepa torta”.

Serve isto para dizer que muitos dos nossos governantes, de ontem e de hoje, não conhecem as especificidades do Douro, que todos os anos há um limite para a produção do chamado Vinho do Porto que foi, ao longo de quase um século e depois da crise da década de 1930, o suporte para a economia da região. A esse limite autorizado, que resultará na junção do melhor mosto em paragem de fermentação com aguardente vínica e dela se fazendo vinho generoso, chamou-se sempre “benefício” ou, para os mais humildes, “cartão”.

Durante décadas, a Casa do Douro, organismo corporativo, serviu de entidade certificadora, de entidade autorizadora do tal benefício, de interventora no mercado e até financiadora de atividades complementares. Essa Casa do Douro morreu na década de 1990, quando os seus órgãos compraram uma parte minoritária de uma empresa exportadora, que não controlaram, e que só serviu para gastar os milhões que eram dos seus associados. E foi enterrada na década de 2000, quando lhe retiraram todas competências e o Instituto dos Vinhos do Douro e Porto passou a mandar em tudo.

Ao mesmo tempo, presenciando os diversos “assaltos” à Casa do Douro, o último feito pela Dra. Assunção Cristas, os viticultores assistiram a um “roubo” ainda maior e que foi concretizado na grande parte das adegas. Umas faliram e outras passaram a estar completamente dependentes dos intermediários. São raros os exemplos de boa gestão.

O Douro de hoje vive entre uma visão que integra produção, comércio e turismo das grandes e médias quintas, a completa desgraça dos agricultores remediados que

caminham para a falência e os pequenos viticultores que tratam as vinhas como se fosse um jardim.

Os primeiros são a economia que contará no futuro, a que agora só tem que olhar para as alterações climáticas e para os mercados para continuar a afirmar-se nos vinhos DOC e compensar as perdas progressivas no vinho generoso; os segundos, vão vender as vinhas a “dez reis de mel coado” aos primeiros ou plantar oliveiras se ainda tiverem crédito para isso; os mais pequenos vão morrer antes de as suas vinhas passarem a ser mais um espaço de incultos.

Durante anos, enquanto parlamentar, tentei que a região consagrasse uma política assente no equilíbrio entre a produção e o comércio. Levei ao limite a tentativa de aprovação de novos estatutos de uma Casa do Douro restaurada. Ela veio a ser instituída, mas, naqueles anos de 2016/2019, eu já estava ultrapassado. O Douro já não tinha massa crítica para manter uma estrutura onde coubessem os grandes, os remediados e os pequenos. Esta é a realidade.

Há culpas de quase todos. Apesar das tentativas de fazer renascer a Casa do Douro em 1996, em 2004, em 2008, em 2017 e em 2022, sempre com os socialistas da região a puxar pela carroça, quase todos os governos e a maior parte das autarquias têm culpas por não terem querido saber do que se estava a passar e terem convivido com os dirigentes das cooperativas que “roubaram” os lavradores. Muitos dirigentes da Casa do Douro e das cooperativas que, salvo raras exceções, delapidaram o que não era deles, viveram de comissões e de despesismo. Lavradores que não souberam tratar do que era seu, deixaram-se iludir por um grupo de salafrários que, ao longo dos anos, os foram enganando.

O Douro tem bons vinhos. Bons vinhos generosos, bons vinhos de mesa. Tem capacidade para competir nos mercados globais, mas não tem uma política comercial de marketing integrada, tem demasiadas marcas, tem custos enormes e tem um sem número de vaidosos que, em vez de olharem para a vinha e o vinho como um negócio que tem de ser muito rentável, os miram como um espaço de afirmação pessoal, de pato-bravismo.

Este ano há menos, muito menos, benefício e a região ressente-se; há ainda muito vinho em armazém e a região ressente-se; há custos acrescidos na novidade e a região ressente-se; há falta de mão de obra e a região ressente-se; há a entrada de milhões de litros de vinho e de aguardente vindos de outros países e a região ressente-se; há um aumento de juros e a região ressente-se. Tudo junto. A região está de língua de fora.

Um governo neoliberal assume que não deve intervir ou, se intervier, que seja só para reduzir o volume dos protestos. Um governo incompetente dissimula porque não sabe como pode ajudar quem está necessitando. Um governo satisfeito consigo próprio desgradua, até porque, ao olhar para os resultados eleitorais dos últimos cinquenta anos, pode sempre afirmar que, apesar das muitas crises, o PPD/PSD sempre teve vitórias. É este o estado da arte.

E o que fazer então? Tenho para mim que pouco pode ser feito. O melhor é acelerar o processo de liberalização dos mercados, cumprindo a política europeia, com a criação de uma Comissão Vitivinícola Regional, e eliminando, de vez, o Instituto dos

Vinhos do Porto e do Douro e a Casa do Douro. Tal situação não condiz com o que é ideologicamente defendido por mim, nem com o que foi a luta de muita gente entre 1984 e 2022, mas é o que mais se impõe. E o que se impõe tem muita força. Fui vencido, mas o que mais lamento é que também tenham sido vencidos milhares e milhares de durienses.

O mundo no Douro será completamente diferente em 2040. Nessa altura, a maior parte dos concelhos do Douro terão menos 30 ou 40% de população, será uma terra de turistas e de imigrantes, será uma paisagem da humanidade que perdeu a humanidade nativa. Será bom ou mau? O futuro, visto com distância, é sempre bom, mesmo que o Homem tenha sempre a propensão para o consagrar como fim do mundo. O Douro, terra que nasceu da improbabilidade, será sempre o Reino Maravilhoso de Torga.