Os últimos meses têm de ser estudados com rigor. Por muito que que quem efetivamente sabe de imigração demonstre, com factos, com números, com valores, que Portugal não tem um problema sério de imigração, que não sobrevive sem imigrantes, que não há uma relação entre aumento da criminalidade e imigração, a narrativa impôs-se e preencheu espaços do discurso político e público.
Em vésperas de autárquicas, é muito preocupante observar como, mesmo em partidos tradicionalmente moderados (e até nalguns grupos restritos de partidos de esquerda), se assume que tem de haver uma resposta para os “problemas” da imigração porque, como já me disseram na cara, “é isso que as pessoas querem ouvir.”
Tudo está errado. Ouçam-se os especialistas, e recomendo em particular a voz de Rui Pena Pires, que mostram que as nossas taxas de imigração são ainda baixas. Leiam-se os números do INE sobre de onde vêm os pedidos de nacionalidade. Sobretudo, desliguemo-nos do lixo das redes sociais, onde moram os vídeos da extrema-direita, as suas hipérboles e impressões.
A quem está em funções executivas, seja nos municípios, seja no Governo, não compete dizer o que as pessoas querem ouvir. Compete governar com verdade e honestidade e não fomentar discursos divisionistas alicerçados em mistificações, perceções e desinformação. Mesmo que a verdade não seja aquilo que responde aos anseios primários da população, que tem de ser esclarecida com rigor. Se recuarmos várias décadas (e infelizmente, ainda hoje), as “pessoas” não queriam ouvir que a violência doméstica era crime. Reinava a lógica do “isso é lá com eles” ou do “entre marido e mulher não se mete a colher”. Felizmente, houve governos, mais à esquerda e mais à direita, que não se limitaram a contemporizar com a opinião popular e militaram fortemente para que se alterasse a opinião pública relativa a um direito fundamental das mulheres. Os exemplos abundam na história da democracia. Houve muita gente que não gostou de ouvir que não deve beber quando conduz, porque se sentia muito capaz conduzir embriagada, mas houve governos que desenvolveram campanhas para que a consciência do risco e da responsabilidade se alterasse.
Contudo, nestes tempos tristes em que as redes sociais falam mais alto do que a razão, parece que há uma demissão coletiva de se aprofundar esta responsabilidade de alterar as opiniões que não são respeitadoras da dignidade. Instalou-se em Portugal (e não só) uma narrativa sobre os imigrantes. Que são muitos. Que as portas se escancararam. Que recebem subsídios, casas e benesses que os cidadãos portugueses não recebem. Que não contribuem com impostos e para a segurança social. Que são violentos e perigosos. Que não nos respeitam. De fantasia em fantasia, com mais ou menos violência na argumentação, estas historietas moldaram o debate político e todos se sentem na obrigação de dizer coisas sobre os imigrantes e de, como o Governo tentou ao arrepio da Constituição, legislar contra os imigrantes.
Ai de quem tente argumentar em sentido contrário. É cilindrado nos tribunais censórios das redes sociais. Nas últimas semanas, vi o diretor do Expresso, João Vieira Pereira, ser apelidado de perigoso marxista, esquerdalho incorrigível, o que é no mínimo risível. Apenas porque disse alguns óbvios sobre o quanto os ataques aos imigrantes se fazem apenas a alguns, que são os que não podem ser acusados de extrativismo. Foi apenas mais um exemplo da reação terrível que existe a quem diz a verdade.
Tem estado bem, aqui e em Espanha, uma fação da Igreja Católica, que se espalda no Papa Francisco e no Papa Leão, afirmando, com clareza que a xenofobia está nos antípodas do cristianismo. Este alerta é tanto mais relevante quanto muita da xenofobia é gritada em nome da defesa dos valores da cultura cristã e porque muitos dos defensores da extrema-direita se afirmam orgulhosamente católicos e cristãos. Esta voz forte da Igreja é um aviso claro de que há quem não esteja cego às contradições destas forças políticas, que espalham o ódio, justificando-se numa cultura que tem na base o amor que, pelas suas palavras e atos rejeitam.
Não sabemos o que podem estas vozes num mundo em que a desinformação elege deputados e alimenta políticas. Sobretudo quando a mentira salta da esfera das redes sociais para órgãos de comunicação social. Todos sabemos onde se posiciona o Jornal Sol (e só isso explica que um outro colunista de extrema-direita sem qualquer currículo político, profissional ou académico por lá escreva). Mas poderíamos desejar que o espaço de opinião fosse distinto do lugar da manchete. Este jornal, na semana passada, escarrapachava na primeira página que os imigrantes são responsáveis pela escassez de um tipo de sangue nos hospitais. Sempre que achamos que não se pode descer mais na indignidade xenófoba, somos surpreendidos. Repare-se no ponto a que chegamos. Se é possível demonstrar que não é verdade que os imigrantes nos estejam a roubar os empregos, os subsídios ou as casas, então inventem-se novos alegados roubos. Crie-se o alarmismo de que são responsáveis por nos levar o sangue! Pareceria uma notícia do Inimigo Público a gozar com os xenófobos. O problema é que os seus autores sabem que, infelizmente, há uma parcela da população que vai ler, não vai questionar, vai acreditar e vai odiar. Isto não é jornalismo, é militância assente em desinformação. E, por isso mesmo, é muito grave.
A literacia mediática é cada vez mais urgente. Não há lugar a hesitações. Que não se calem as vozes que denunciam, para que se construa uma opinião informada e não apenas a réplica fácil ao que se quer ouvir.
Fazer política honesta, em democracia, é dizer o que tem de ser dito, em nome da dignidade e na defesa dos valores inscritos na nossa Constituição.
Temos de estar vigilantes e não permitir que novos factoides políticos sejam criados por estas forças. Era bom que os imigrantes tivessem a capacidade de fazer greve durante uma semana. Talvez a narrativa se alterasse com um país completamente paralisado sem a força do seu trabalho.