Os resultados das eleições de 2024, com a confirmação em 2025, levaram a que muitos políticos da área do governo e inúmeros comentadores do seu entorno tivessem passado a afirmar que a Aliança Democrática era, agora, o centro moderado, uma espécie de espaço virtuoso que o povo português, muito atreito a não querer grandes conflitos, entenderia como o ideal.
A grande ambição do PPD/PSD era, pois, a apropriação do lugar que o PS ocupou nas últimas três décadas, situando-se entre uma direita neossalazarista que sempre esteve no PPD e no CDS, agora junta no partido de um homem só, e aquilo que passaram a considerar como o “partido esquerdista” que resultava da experiência geringonciana em que os socialistas embarcaram em 2015.
Para que esta narrativa tivesse validade, era preciso que se analisasse a política portuguesa do tempo de hoje com os mesmos padrões de análise do século XX, coisa que ninguém avisado providenciará.
Mas mesmo que os mais crentes tivessem achado que a AD era, agora, o centro bondoso, não foram precisos muitos meses para que toda essa construção caísse por terra.
O primeiro grande embate foi a propósito da imigração. Com propostas que não vão só no sentido da regulação do fenómeno e da correção de alguns caminhos anteriores, o ministro da presidência foi muito longe ao implicar, de forma lamentável, em direitos constitucionais que deveria proteger. Ter a Igreja Católica a pedir a Marcelo para vetar uma lei, não é nada habitual. Lá se foi a mensagem da moderação.
Estávamos a entrar no período de férias e, de novo, o Governo mostra os dentes. Agora não é a correção dos conteúdos programáticos da disciplina de Cidadania, mas é mesmo a eliminação quase absoluta da educação sexual das matérias centrais que as escolas devem seguir. O excesso do ministro da educação foi tal que nem um só comentador, com dois dedos de testa, veio em sua defesa. E de novo se foi a mensagem da moderação.
Não satisfeitos com o caminho seguido, Montenegro liberta Maria do Rosário Palma Ramalho, ministra do trabalho, e dá-lhe gás. Não se trata de um “elefante”, porque não o é, nem de uma loja de porcelana, porque o nosso país está longe de o ser, mas que a ministra partiu tudo de uma só vez é uma comprovação científica.
Ainda há quem diga que o PPD/PSD é social democrata, outros dizem que ainda se funda em princípios cristãos. Já se sabia que isso era conversa fiada. Mas as alterações ao Código do Trabalho são a maior comprovação do neoliberalismo mileiniano que graça na floresta montenegrina.
O trabalho, a sua dignidade e centralidade na nossa vida coletiva, a sua relevância na construção de uma sociedade justa, a sua essencialidade na luta contra a pobreza e na promoção do sucesso individual, foram arrasados por Palma Ramalho e Montenegro.
Vivemos num tempo de quase pleno emprego, de transformação tecnológica, de flexibilidade e polivalência. É exatamente por isso, que o Estado, enquanto potenciador de equilíbrios entre empregadores, empregadores/trabalhadores em simultâneo e trabalhadores, deve ser muito ponderado.
No meio de uma centena de alterações do Código do Trabalho, Ramalho recua no que se refere à redução dos tempos máximos dos contratos a termo. Poderíamos questionar-nos se isso é relevante nos dias de hoje, como nos comportamos no espaço europeu. Ora são os próprios promotores de emprego que dizem que Portugal é um dos países onde mais se recorre a trabalho a termo, a percentagem deste tipo de contratos é superior à média europeia em oito pontos e só Itália, Polónia e Países Baixos têm uma percentagem maior do que o nosso país. Foi um tiro ao lado de Ramalho.
E, com ardil, promovem uma mudança no despedimento com justa causa, em empresas até 250 trabalhadores, que retira o essencial direito de defesa ao subordinado em sede de processo disciplinar ou judicial. Num Estado de Direito é inaceitável tal previsão, é mesmo inconstitucional. Sabem o que vai acontecer? O Tribunal Constitucional vai determinar a inconstitucionalidade da norma, uma mão cheia de políticos e comentadores vão voltar a atacar esse órgão e a dar mais alento a uma revisão constitucional feita por todas as direitas que têm hoje 2/3 do parlamento.
Há, ainda, outro universo que se prende com o trabalho não declarado. Em casa de Palma Ramalho devem trabalhar senhoras que antigamente era apelidadas de “sopeiras”. Os governos do PS olharam para este universo com olhos de ver, tomaram as dores de quem, para além de ser explorado, se sentia despido de dignidade. O trabalho não declarado deve ser crime. Não pagar impostos é crime, não cumprir com deveres de civilidade pode ser crime, por que razão o trabalho permanente não declarado não deve ser crime? Continuamos na dignidade do trabalho, condição central da encíclica Rerum Novarum que ainda hoje marca o mundo cristão e que fez com que o cardeal Prevost se passasse a chamar Leão.
Sou muito flexível quanto às opções que as novas gerações têm sobre o trabalho. Há quem diga que são até pouco socialistas quanto à abertura que tenho sobre a sua previsão normativa, mas uma coisa é o direito de cada um em seguir pela forma de
prestar o trabalho e outra são as obrigações legais que se devem impor a essas novas formas de relação laboral. A desqualificação que a reforma ramalhiana impõe ao trabalho nas plataformas digitais, dificultando o reconhecimento de contratos de trabalho, e a porta escancarada para os despedimentos coletivos, que serão substituídos pelo outsourcing, não são medidas exigidas pelas empresas com forte componente de rigor ético e de responsabilidade social, são velhas ideias de uma parte dos patrões portugueses que, para além de darem trabalho, também implicam na individualidade, submergem os servidores numa dependência pessoal absurda.
De todos os temas em debate, há dois que fazem desmerecer a inteligência da ministra. O primeiro – ouviu dizer que há mulheres que amamentam até tarde só para faltarem ao trabalho; o segundo – no seu achómetro o luto gestacional é coisa menor.
Também há pessoas que abusam das baixas médicas e não é por isso que se tomam medidas gerais de limitação de acesso; também há pessoas que utilizam o subsídio de desemprego de forma ilegal e não é por isso que se transformam todos os desempregados em gente atrevida. Talvez não reste à ministra nenhum pingo de bom senso, ainda mais sendo professora de direito.
Depois da eliminação do reagrupamento familiar para imigrantes e deste ataque às medidas favoráveis à natalidade, o que pensa o governo da nossa realidade demográfica? Quem vai pagar as pensões e reformas daqui a três décadas?
Quando se chega ao ponto de ir à norma sobre o luto gestacional, como elemento central de uma mudança nos direitos do trabalhadores, já não é só uma questão de bom senso, nem de compaixão, é mesmo o mais profundo desprezo pela vida humana. Foi exatamente aqui que os neossalazaristas, por oportunismo ou por convicção, demonstram ser mais humanos do que Palma Ramalho e Montenegro. Também foi aqui que se constatou que a tal moderação de centro, que nos andaram a impingir, era só conversa fiada.