Opinião

PS e AD: um acordo escrito e um “sim é sim” aos valores fundamentais da Constituição

Se a AD quer um Governo estável, deve comprometer-se com a preservação de valores fundamentais. A Constituição tem sido o nosso chão comum na salvaguarda da liberdade e da igualdade, da dignidade de todos e no compromisso com um Estado que garante condições de sucesso a todos

É já evidente para todos que o PS viabilizará o novo Governo da AD. Porque não há outra opção, porque precisa de tempo para refletir sobre os resultados, que como já eu e muitos outros escreveram, não são um dado legível à margem de um contexto maior nacional e internacional, porque há a responsabilidade de não nos atirar novamente para eleições, cujos resultados seriam ainda piores.

Defendo que um Governo de bloco central seria terrível para a nossa democracia. Entregaríamos a oposição ao Chega, com tudo o que isto significa, em particular tendo em conta a fraquíssima qualidade deste partido, errático, irresponsável, que faz da gritaria e da boçalidade a sua marca na política. O país não precisa disto, de atribuir a responsabilidade da oposição a quem só sabe destruir e vive da mentira sistemática e sistémica para manipular emoções à custa da defesa da verdade, assim conspurcando o debate político.

Na legislatura anterior, o chefe do Governo, Luís Montenegro, por taticismo – misturado com um misto de arrogância e ingenuidade – não quis perceber a tibieza do seu suporte parlamentar ultraminoritário, vacilando entre um continuado eleitoralismo e uma atitude de constante vitimização e chantagem. Os sinais desta forma de estar foram evidentes na recusa de negociar instrumentos fundamentais como o Orçamento do Estado de forma robusta e jogando a carta da estabilidade, sem se ter preocupado em procurar equilíbrios e pondo o seu partido a alimentar uma tonta ilusão de que o PS e o Chega faziam alianças que nunca existiram. Não é isto que se espera de um Primeiro-Ministro num contexto em que as democracias enfrentam riscos tangíveis.

Os tempos não estão para brincadeiras e jogos táticos. O espaço público está irrespirável, no mundo de redes sociais tóxicas em que se constroem opiniões assentes em chavões simplistas e mentiras recorrentes. O discurso de ódio cresce, bem como o relativismo que iguala manifestações de liberdade aos piores ataques à dignidade humana (ainda ontem lia um texto inqualificável de um militante do CDS, herdeiro do catolicismo mais atávico, que, em apoio a Carlos Moedas, afirmava, sem vergonha na cara, que a comunidade LGBT é idêntica à confederação de criminosos transformada em partido, o Ergue-te. Se isto não é atirar para a lama valores essenciais do humanismo, não sei até onde estas pessoas do CDS querem aprofundar o chafurdar no lamaçal). As contas públicas não inspiram uma enorme confiança, como todas as organizações internacionais têm alertado, convocando a governação para decisões difíceis e palavras de verdade, incompatíveis com um eleitoralismo constante. Os retrocessos civilizacionais que pautam os discursos de vários governantes pelo mundo inteiro – com o expoente máximo do Presidente dos Estados Unidos – têm de continuar a encontrar na Europa um tampão em nome da liberdade, da solidariedade e da inegociabilidade dos direitos humanos.

Pede-se, pois, a Luís Montenegro que, neste segundo Governo, seja mais responsável. É a quem quer governar que se exige a procura de estabilidade. Não é responsável atirar essa responsabilidade para os outros, como se essa não fosse a sua primeira função. A sua fórmula de governar para eleições e de as provocar já revelou não atingir o objetivo. Nem conseguiu uma maioria reforçada, tendo a pior votação conseguida por um governo em funções, nem logrou travar o crescimento do populismo. Deve ser sua a iniciativa primeira de procurar consensos e apoios, de criar condições de governabilidade. Para isso, tem de saber ouvir, de assumir, com humildade, que tem de fazer cedências no seu Programa, deixar cair propostas e integrar propostas que até poderia não considerar.

Todo este preâmbulo serve para defender que, se a AD quer um Governo estável, deve comprometer-se com a preservação de valores fundamentais. A Constituição tem sido o nosso chão comum na salvaguarda da liberdade e da igualdade, da dignidade de todos e no compromisso com um Estado que garante condições de sucesso a todos sem alienar ao interesse e ao lucro de uns poucos a felicidade de todos.

Para viabilizar o Governo e os seus instrumentos de governação, o Governo deve propor e o PS deve impor linhas vermelhas, que devem ficar firmadas em acordo escrito. A condição primeira, assinada por ambos, deve ser, no meu entender, o compromisso de que, durante esta legislatura, não será feita uma revisão constitucional. Em nome de valores fundamentais, em nome da rejeição das propostas indecentes e indecorosas do Chega, que proporá o pior para viabilizar o menos mau. Se a Constituição se mantiver intocada, o sistema democrático respirará melhor, porque se blindará a influência do populismo assente em mentiras e ameaças (nunca é de mais lembrar que defende uma suposta quarta República nas suas palavras de ordem). Esta seria a condição essencial. Ainda que não esteja na prioridade das preocupações dos portugueses, deve estar no topo das prioridades do PS e do PSD, para que se proteja tudo o que está no topo do que afeta a vida dos cidadãos. Só deve haver viabilização com esta linha vermelha bem traçada.

Outros temas poderão ou deverão estar num acordo escrito. A recusa da privatização das pensões; o abandono do discurso populista anti-imigração, consubstanciado em propostas humanistas de integração da população imigrante, invertendo os gáudios do ministro Leitão Amaro ou as tontas conferências de imprensa que alimentam perceções sem conexão com dados reais; o compromisso com a estabilidade das contas públicas; a reversão do desinvestimento em ciência; a garantia de que o cumprimento das metas orçamentais para a defesa e segurança não afetam negativamente as funções sociais do Estado.

Poderá ainda ficar, desde já registado, que o Governo não apresentará novas moções de confiança com o propósito de – em boa gíria – “entalar” o PS.

A redação deste acordo de princípios não aliena o papel de oposição do PS, nem amputa a sua capacidade de intervenção, crítica, apresentação de propostas ou rejeição daquilo com que não concorda. É bom lembrar que, da última vez que uma legislatura foi integralmente cumprida e o Governo mereceu uma larga aprovação da população, as soluções implicaram assinaturas e palavra escrita.

É tempo de ser responsável, mas não é tempo de confiar em palavras vãs. Se Luís Montenegro quer ser fiel ao seu “não é não”, mostre, em conjunto com o PS, que o pacto tácito de preservação dos valores fundamentais inscritos na nossa Constituição é um sólido “sim é sim”.