Opinião

Uma breve história do direito do voto das mulheres, numa altura em que nada é mais frágil do que a Liberdade

Votem para que no futuro não tenhamos de encontrar uma lacuna na lei para o tornar possível, como teve de fazer Carolina Beatriz Ângelo. O nosso voto é útil quando reflete os nossos valores e quando sabemos que esse voto vai proteger as pessoas mais desprotegidas pela sociedade

O direito ao voto.

Tomamos por garantido este direito e dever cívico de todas as pessoas do nosso país, muitas vezes esquecendo a importância do “dever cívico”. Pois, então, recordemos a história da democracia do voto, sem nos alongarmos demasiado (não vos quero maçar, só quero que vão votar).

Considera-se, como nos ensinam, que a democracia nasceu na Grécia Antiga, cinco séculos antes de Cristo, quando, na verdade, esta noção de “democracia” era extremamente limitada. O que nasceu na Grécia Antiga, foi muito mais uma Falocracia de privilégio social e económico: as mulheres não podiam votar, nem estrangeiros, nem escravos (somente a sua existência de forma legalizada já era um problema). Todos os cidadãos no sexo masculino eram livres de assistir às assembleias, que aconteciam quatro vezes por mês e as decisões respeitavam a opinião da maioria — que teve disponibilidade laboral e direitos civis para lá estar. Fazer parte da vida política era um privilégio social e económico: era preciso nascer-se em famílias com dinheiro para ser possível a aprendizagem de ler e escrever, era preciso nascer homem e nascer-se livre. A liberdade era um direito limitado de nascença classicista.



Já em Portugal, aquando a primeira lei eleitoral, em 1911, — houve cinco leis durante os 16 anos da Primeira República — a realidade, àparte da escravidão, abolida em 1570, não era muito diferente da Falocracia Classicista de Grécia Antiga. O direito ao voto estava restrito aos “cidadãos maiores de 21 anos que soubessem ler e escrever ou fossem chefes de família”. Relembremo-nos que a taxa de analfabetismo do Povo Português, nesta altura, era de 70%. Como os direitos das mulheres eram a última coisa na cabeça dos homens com poder político, foi deixada uma lacuna aberta na lei: não especificavam o sexo das pessoas com direito a voto. Assim, Carolina Beatriz Ângelo, mãe, viúva e, portanto, chefe de família, conseguiu votar. Consequentemente, a lei vigente foi atualizada em 1913, pois, claro, excluindo as mulheres do direito ao voto de forma explícita: “cidadãos do sexo masculino maiores de 21 anos que soubessem ler e escrever”.

Chegando 1918, uma brisa de esperança pairava no ar quando foi publicado um documento, que reúne o Decreto n.º 3907, de 11 de março de 1918, intitulado “Sufrágio Universal”. No entanto, o decreto apenas permitia que as pessoas iletradas passassem a votar. Citando: “Nem se diga que o iletrado é incapaz de escolher quem legitimamente o represente.” Mesmo assim, as mulheres, que literalmente dão à luz os cidadãos, não tinham representatividade nenhuma, não tinham direito ao voto. Em 1931, as mulheres com cursos secundários ou superiores passaram a ter o direito ao voto reconhecido. Ou seja, em 1931, a República considerava que para uma mulher ter tanta capacidade de raciocínio quanto um homem analfabeto, tinha de ter concluído, pelo menos, o secundário. Ora, tendo em conta que o cuidado dos filhos e da família recaía quase de forma total nas mulheres, esta medida era, na verdade, uma forma de continuar a manter as mulheres afastadas da opinião política, com um embelezamento de quotas de representatividade classicista: a grande maioria das mulheres não tinha tempo, oportunidade, nem capacidades económicas para prolongar os seus estudos até ao ensino secundário.

Seria de esperar que se quisesse um governo que representasse devidamente o povo, no entanto, a República representava os interesses de quem era detentor de poder: os homens com privilégio social e económico. Por muito que fossem as mulheres a criar os homens, nenhum direito de voto lhes era concebido. Estranhamente, pouco se fala da proposta do deputado Borges de Barros, apresentada em 1822. O deputado considerava que as mulheres com seis filhos legítimos deveriam poder votar, por estarem a criar a nação: “o direito de votar naqueles que devem representar a Nação”, pois que ninguém dá mais ao país do que “quem lhe dá os seus cidadãos”. Embora a proposta de taxa de criação de filhos para a obtenção do direito ao voto da mulher fosse elevada e descabida, Borges de Barros tomou uma posição muito progressista para a altura, acusando, inclusive, os homens de manterem as mulheres na ignorância por recearem a sua superioridade, já que não havia nenhuma limitação cultural ou intelectual nas mulheres que as impedisse de ter capacidade para exercer o direito ao voto. Como seria de esperar, a proposta de Borges de Barros não foi admitida à discussão pelo Parlamento: as mulheres foram consideradas incapazes, pois “não tinham voz nas sociedades políticas”.


Só após a Revolução de 25 de Abril de 1974 é que, realmente, se consagrou o sufrágio universal, abolindo as restrições ao direito de voto baseadas no sexo dos cidadãos.


Por tudo isto, ir votar é um ato de manifesto, especialmente para as mulheres, para as pessoas racializadas, para a comunidade LGBT e para quem cresceu sem privilégios sociais ou económicos. Claro que pode ser contestado que o sistema vigente de voto tem lacunas, como, por exemplo, com as diferenças de força do voto conforme os círculos eleitorais, mas não votar não é opção. Votar é um manifesto pela liberdade, pelo direito a ter voz e representatividade. Não votar é falhar com a democracia e não há nada mais frágil do que a Liberdade.

Votem para que no futuro não tenhamos de encontrar uma lacuna na lei para o tornar possível, como teve de fazer Carolina Beatriz Ângelo. Votem para continuarmos a ser ouvidas. Votem num partido que tenha consciência cívica em relação a todas as minorias de poder: as minorias juntas são a maioria e quando votamos não votamos só para nós mesmas e mesmos, votamos para o país inteiro. O nosso voto é útil quando reflete os nossos valores e quando sabemos que esse voto vai proteger as pessoas mais desprotegidas pela sociedade.

No próximo domingo, se ainda não votaram antecipadamente, levantem-se do sofá e vão votar. O sofá não precisa de vocês, mas a democracia precisa do vosso voto.