Opinião

As memórias de Merkel, as políticas de Trump e a ciência no meio disto

A administração Trump 2.0 será indubitavelmente – já está a ser – uma ameaça e um teste de resiliência para o compromisso com a saúde global, no qual a União Europeia terá que saber reposicionar-se com líder

Nos Estados Unidos (EUA), fomos confrontados com a morte confirmada de uma criança por sarampo na última semana de Fevereiro e mais uma morte sob investigação de um adulto que testou positivo para a mesma patologia: nenhuma das pessoas estava vacinada. Qualquer morte é uma tragédia, mais ainda quando se trata de uma criança vítima de uma doença prevenível através da vacinação. O sarampo foi oficialmente considerado eliminado nos EUA em 2000 e estas são as primeiras mortes em dez anos, a par de um declínio na taxa de vacinação e num momento em que o número de novos casos continua a subir em vários estados, com um total de 222 desde o início do ano na última atualização. 94% desses casos afetou cidadãos não vacinados, a maioria crianças.

O recém-nomeado Secretário da Saúde, Robert F. Kennedy Jr., escolha que preocupa a comunidade científica internacional, por ser um conhecido céptico em relação à vacinação e já ter em vários momentos promovido informação falsa, refutada pela evidência científica. A gerir o actual surto de Sarampo, Kennedy Jr. começou por desvalorizar a situação, mas recuou dias depois, reconhecendo a importância de reforçar a imunização e anunciando mais vacinas. Contudo, nas declarações que tem proferido, continua a colocar a tónica na vacinação como uma decisão individual, desviando a atenção da crise sanitária.

Têm-se sucedido os protestos nos EUA contra os importantes cortes de fundos para investigação científica e os despedimentos em massa em agências científicas governamentais. Destaque para o movimento #StandUpForScience, cuja ressonância transatlântica ficou patente no passado dia 7 de Março com várias ações em França e numa coluna no “Le Monde” intitulada “Vamos defender a ciência contra os esforços anti-conhecimento”, assinada, entre outros, pela virologista Françoise Barré-Sinoussi, laureada em 2008 com o Nobel da Medicina pela descoberta do vírus da SIDA.

Também a saída da Organização Mundial de Saúde o desmantelamento da Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional podem ter um impacto relevante no conhecimento, monitorização, disseminação e combate de doenças à escala mundial. É verdade que os EUA eram os maiores contribuidores para o orçamento da OMS, mas esta saída e consequente “poupança” pode bem sair cara ao país pelos já referidos motivos e ainda com repercussão não apenas na saúde, mas também a nível económico e político. Ainda relativamente aos cortes nos fundos destinados à investigação, de acordo com uma publicação na “Nature”, as instruções ao Instituto Nacional de Saúde (NIH) dos EUA são para que a investigação e os programas de formação versando diversidade, equidade e inclusão deixem de ser considerados prioritários.

Leio neste momento o livro “Liberdade”, memórias de Angela Merkel, ex-chanceler Alemã e, não se podendo fazer comparações directas entre momentos históricos, não posso deixar de rever nas suas palavras riscos da actual política de Trump, contraposta por uma inabalável crença na liberdade e na Ciência. Escreve a certo ponto Merkel, em 1972, então a viver na RDA: “(…) optei por estudar Física. Não foi a disciplina em que tive mais facilidade, mas a escolha foi feita por outros motivos: era uma ciência da natureza, e nem mesmo a RDA poderia deturpar todos os factos”. A administração Trump 2.0 será indubitavelmente – já está a ser – uma ameaça e um teste de resiliência para o compromisso com a saúde global, no qual a União Europeia terá que saber reposicionar-se com líder.


Deixo três notas finais: a desinformação mata; as doenças não conhecem fronteiras e doenças anteriormente eliminadas podem ressurgir; a saúde global é verdadeiramente um bem comum. Com censura na Ciência, é toda a Democracia que está sob ameaça.