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Opinião

O teu medo incomoda-me

Os factos e a perceção apenas alimentam quem só vê uma hipótese: os imigrantes são terríveis criminosos ou são anjos

Estou farto de extremos. Tudo é preto ou branco, gregos ou troianos, amo a vida ou amo o aborto, se comes carne é porque queres a destruição do planeta. Tudo na vida me ensinou a descon­fiar de tamanhas certezas. Continuo a achar que também neste particular a pandemia foi um desastre global. A vários títulos, vimos a humanidade enlouquecida erguer um único muro, alto até ao céu, e escolher um dos lados. Quereis exemplo ­maior do que as vacinas? Foi o período em que me senti mais perdido em décadas de pacata existência. Por norma, sou da vacina. Filho de médico, desde cedo me inclinei a louvar os avanços da ciência, e julgava que toda a gente sentiria o mesmo. Éramos crianças, lá íamos um dia à vacina disto ou daquilo, era para nos proteger de doenças. E, pronto, não se falava mais no assunto. Foi a pandemia que me despertou para outras sensibilidades. Afinal, há muita gente que não quer vacinas, que as combate, que mantém os filhos longe delas, que acredita que elas não fazem bem nenhum, fazem é mal. Que fiz com esta informação? Nada. Ouvi, li, pensei e continuei a achar que acredito mais nos benefícios do que nos riscos. Fui à minha vida e deixo os outros andarem na deles. Mas, ao olhar em volta, percebi que os dois lados da barricada não queriam acabar já com a discussão, voltar costas, encolher ombros, seguir caminho. Não. Cada lado entendeu que deveria evangelizar o outro. Há que convencer os outros a ser como nós, porque nós temos razão. E de cada vez que isso não acontece o ódio cresce. Cada um começou a revelar que não lhe basta ser feliz na sua escolha, deseja o mundo inteiro vergado à mesma vontade. E assim seguimos, e aqui estamos. Com a crescente incapacidade de encontrar uma vírgula de razão no outro lado.