Opinião

Aceitar Trump, salvar a NATO

A relação entre a administração Trump e a União Europeia enfrenta desafios históricos, num momento em que as tensões transatlânticas não podem mais ser ignoradas

“O que é a Civilização? Não sei. Não consigo defini-la em termos abstractos. Mas penso que consigo reconhecê-la quando a vejo; e estou a vê-la neste momento”. Estas foram as palavras de Kenneth Clark diante da catedral de Notre Dame, em Paris. No início do seu Civilization, lembra-nos ainda de que a Civilização, por mais complexa e sólida que pareça, é na verdade bastante frágil e de que pode, por isso, ser destruída.

A civilização, como sugere Kenneth Clark, é uma delicada tapeçaria entrelaçada por fios de ordem e mutação, arcos e contrafortes invisíveis, mas indispensáveis: sem a ordem, ela esfiapa; sem a mutação, ela engessa. Essa fragilidade constitutiva e vital é, por isso mesmo, inseparável da segurança que a protege. Civilização e segurança andam a par e passo, como irmãs siamesas inseparáveis, sendo essa ligação ainda mais essencial para nós num sistema internacional em transição da Unipolaridade norte-americana para a Multipolaridade.

Foi isto mesmo que Donald Trump compreendeu precocemente. Com todo o seu espalhafato e imprevisibilidade, Trump não é uma ameaça à segurança do Ocidente: ameaça à segurança do Ocidente é a incapacidade de reconhecermos um mundo em mutação. Trump é um sinal ruidoso do fim da hegemonia internacional dos Estados Unidos; um despertador (e não é propriamente pela sua cortesia que os despertadores são famosos) para acordarmos da nossa letargia histórica e estratégica. Ele herdou, não inventou, a circunstância em que se encontram os EUA e o sistema internacional. Ele não inventou as tensões do nosso tempo: expô-las e cristalizou-as.

Donald Trump deve por isso ser compreendido a partir do dilema clássico enfrentado pelas superpotências: o Overstretching, que ameaça enfraquecer o seu poder, e o subsequente Retraimento, que ameaça encorajar os seus adversários.

Por um lado, a superpotência, tentada a afirmar-se como omnipotência, corre o risco de se vaporizar na sua própria ubiquidade. Da Macedónia de Alexandre o Grande ao Império Romano, do Império Napoleónico à União Soviética, o Overstretching é a armadilha fatal das nações que, confundindo tamanho com influência, sacrificam o equilíbrio, sempre precário, entre as ambições expansionistas e os recursos disponíveis.

Por outro lado, o Retraimento de uma grande potência também não se faz sem risco, nem está imune à validade da sentença, indispensável à compreensão das relações de poder, de que o poder tem horror ao vazio. A renúncia ao fardo da ubiquidade dá origem, não raro, à incubação de um perigoso vácuo que atrai os predadores revisionistas do sistema internacional. Os colossos fatigados que se retiram para contemplar as suas feridas e amputações deixam para trás um mundo de órfãos desesperadamente em busca de novo pai e disputando, de forma sangrenta, os escombros da sua influência.

A NATO, ela própria um reflexo destes desafios sistémicos e destes dilemas estratégicos, não pode ser devidamente compreendida hoje ignorando este problema: a necessidade norte-americana de redução do seu Overstretching através de uma estratégia de Retraimento exigirá, por isso, o reforço do Burden-Sharing de todos os seus membros. E é nisso que devemos concentrar todo as nossas forças e energias, pois a NATO é a nossa catedral de Notre Dame em termos de segurança e defesa da civilização ocidental. Sendo a segurança e a sobrevivência o fim últimos dos Homens e dos Estados, a NATO, que garante ambas, tem de ser vista como o fim que justifica os meios, mesmo que eles tenham de passar pelo afastamento de líderes europeus não eleitos que - esses sim – se tornaram uma ameaça à existência da Organização do Tratado do Atlântico Norte.

O anti-trumpismo primário e obsessivo, que se transformou entre as elites europeias numa ideologia sonâmbula com vida própria, não pode sobrepor-se aos, nem sacrificar os, interesses de segurança e os valores civilizacionais, profundos e estruturais uns e outros, que partilhamos com os Estados Unidos. Porque não se trata apenas de combater ameaças visíveis, mas de defender a essência intangível daquilo que define o Ocidente enquanto civilização.

Victor Davis Hanson, num artigo de Maio de 2019 que permanece inquietantemente actual, ofereceu uma reflexão cirúrgica sobre a obsessão anti-Trump do Partido Democrata, evocando a trágica obsessão do capitão Ahab na sua caça a Moby Dick. Como Ahab, cuja perseguição cega à baleia branca conduz ao abalroamento do Pequod e ao seu próprio destino enredado no arpão que arrasta o seu corpo – e a sua obsessão – para as profundezas, assim também a fixação política dos capitães Ahab da Europa (com von der Leyen ao leme do baleeiro) se arrisca a conduzir a NATO ao naufrágio moral e estratégico. A NATO, organização simultaneamente securitária e civilizacional, é demasiado importante para ser reduzida ao palco de ressentimentos mesquinhos e repulsas de estimação em que se consomem as lideranças europeias.

A relação entre a administração Trump e a União Europeia enfrenta desafios históricos, num momento em que as tensões transatlânticas não podem mais ser ignoradas. O regresso de Donald Trump à Casa Branca ocorre depois dos seus anos de atritos com Bruxelas, marcados sempre por divergências comerciais, críticas à falta de contributos financeiros justos para a NATO e quezílias com vários líderes europeus, alguns dos quais o associaram, na altura e agora, a tendências autoritárias. Além disso, a aliança de Trump com Viktor Orbán é real, não é ficção. O primeiro-ministro húngaro, que detém a Presidência rotativa do Conselho da UE, foi o único líder europeu referido nos rallies de Trump. E em tom elogioso. O mesmo Orbán que foi humilhado e desconsiderado por Ursula von der Leyen em pleno plenário, em Estrasburgo, há poucas semanas. O status quo que comanda todos os degraus do poder em Bruxelas considera que Orbán desafia “os valores” da UE, Trump reconhece nele um aliado estratégico.

Por outro lado, há Elon Musk. O dono do X está no centro de disputas legais abertas pela Comissão Europeia, depois de iniciativas promovidas pelo ex-comissário Thierry Breton. Embora este tenha saído de cena, os processos contra as empresas de Musk continuam bem vivos, criando uma nuvem de incerteza que pode escalar para um confronto político (e económico) mais amplo, caso Bruxelas mantenha a sua abordagem hostil.

Num cenário onde a NATO é essencial para a segurança europeia, o vice-presidente eleito J.D. Vance já alertou que os EUA não aceitarão uma relação meramente utilitarista. Durante uma entrevista recente foi até bastante claro: Vance reiterou que a segurança europeia depende de uma aliança sólida, mas também de reciprocidade no compromisso financeiro e diplomático. A NATO não pode ser usada como escudo por uma UE que, ao mesmo tempo, aliena o direito à liberdade de opinião e de pensamento. A referência ao X, ainda que indirecta, é óbvia.

Se a União Europeia insistir em caminhar por essa via, poderá descobrir que a nova administração americana tem pouca paciência para o que considera uma hipocrisia europeia: dependência militar combinada com antagonismo político. Uma receita que tem tudo para correr mal.

A civilização sempre soube buscar energia na assunção, e não na negação, dos seus desafios. A Multipolaridade não é o Armagedão, mas um teste à maturidade – estratégica e civilizacional – do Ocidente. A civilização ocidental sobreviveu a séculos de crises porque soube transformar as forças que a ameaçavam em energia criadora. O mesmo princípio metodológico e vital tem de se aplicar agora. É precisamente na tensão entre aquilo que tememos e aquilo a que aspiramos que reside o segredo da nossa resiliência civilizacional. Trump – o momento, mais do que o homem – carrega consigo um mérito inestimável: o de nos obrigar a ver o que temos diante de nós. E neste momento histórico, também nós estamos diante da catedral de Notre Dame. Vemo-la. Mas saberemos ainda, como sabia Kenneth Clark, que é a Civilização que estamos a ver?

Eurodeputado eleito pelo Chega