Opinião

EUA: uma república… se a conseguirem manter

Na semana final até às eleições, tentemos usar uma das invenções de Benjamin Franklin para viajar no tempo e ver as fragilidades do sistema desenhado em Filadélfia para governar os Estados Unidos da América, guiados por algumas das suas “Founding Mothers”

Quando perguntaram a Benjamin Franklin, à saída de um dos debates na Convenção Constitucional de Filadélfia, a que sistema tinham chegado na Constituição, o mais extravagante dos “Founding Fathers” (pais fundadores) dos EUA respondeu: «uma república… se a conseguirem manter».

Logo aí, o génio octogenário previa muitas das fragilidades que os séculos seguintes trariam: uma guerra civil, uma América dividida desde a nascença (a tensão entre maior ou menor federalismo perduram desde sempre), uma América mais aberta ou fechada à diferença, aos estrangeiros, às liberdades, às intervenções fora do seu território… A maior parte dos dias seguintes a eleições, sempre nas primeiras terças-feiras de novembro, não foi pacífica ou calma.

Para conhecermos os “bastidores” da feitura da Constituição americana temos de regressar a 1787, e, apesar de, na Convenção da qual resultou o texto final, apenas intervirem homens, ler as cartas trocadas entre esses homens e as suas mulheres, ou outras ativistas, é muito interessante para perceber as dúvidas, medos e ansiedades que cada um sentia sobre o país que estava a começar.

O 2.º Presidente, John Adams, queria poderes mais centralizados, e uma lógica de controlo dos poderes uns pelos outros, mas também queria abolir a escravatura e consagrar direitos das mulheres (as cartas que trocou com a sua mulher, Abigail Adams, deixam isso muito claro). O 3.º e o 4.º presidentes, Jefferson e Madison, queriam manter mais autonomia nas colónias – agora estados – para poderem decidir livremente o seu futuro. O 1.º Presidente, George Washington, teve sérias dúvidas sobre começar um segundo mandato como presidente e Benjamin Franklin teve reticências sobre o texto constitucional final. Elizabeth Willing Powel (outra das mais desconhecidas “Founding Mothers”) foi determinante para convencer Washington a continuar e foi quem questionou o inventor Franklin (criador dos correios dos EUA e primeiro “Postmaster-General”) sobre o tipo de sistema de governo (monarquia ou república) escolhido pelos eleitos para aprovar a Constituição e nos deixou relatos disso.

Vivemos, em 2024, uma das campanhas mais “diabolizadoras” da parte contrária dos nossos tempos, mas isso não é novo, nem sequer no tempo de vida da maior parte dos eleitores: o Vice-Presidente eleito em 2004 (que hoje apoia Kamala Harris) foi vendido como Darth Vader pelos seus opositores. Apesar de terem tido vitórias muito expressivas em 1964 ou 1972, Lyndon B. Johnson (democrata) e Richard Nixon (republicano) foram responsáveis por importantes alterações políticas, mas ainda hoje são associados a manobras de bastidores no Capitólio, sendo os modelos para os líderes políticos de séries como “House of Cards”, em que se pressionam congressistas e senadores até ao limite (por vezes para além dos limites). E estas imagens de que o oponente é um inimigo foram usadas em inúmeras campanhas, desde que há registos.

A primeira eleição renhida, em 1796, entre John Adams e Thomas Jefferson, deixou uma América dividida, tendo Adams começado um governo em que nomeou incontáveis juízes, para garantir que a sua “tendência” de governo iria prevalecer mesmo após uma eventual derrota, como a que se verificou em 1800, sendo o 1.º presidente não reeleito da História dos EUA. Esta marca de nomear muitos juízes e membros de cargos públicos não parece atual?

Tendo trabalhado juntos e cooperado para a independência americana, a relação entre Adams e Jefferson ficou ferida para sempre depois dessa derrota eleitoral, dos processos judiciais que se seguiram e do muito que os próprios e os seus partidários disseram ou escreveram sobre os oponentes. Não foram palavras bonitas. É certo que, até morrerem precisamente no mesmo dia, 4 de julho de 1826 (o dia da independência da União!), os dois rivais se aproximaram, mas as duas fações que representam ainda hoje são a marca de uma América dividida constantemente em busca de (re)aproximação dos frágeis ideais comuns que faziam Franklin temer pela manutenção da república.

Não são comuns os discursos a elogiar o adversário e a prometer-lhe fidelidade e a desejar-lhe sucesso, como fizeram John McCain, em 2008, George H. Bush, em 1992, Carter, em 1980, ou Ford, em 1976. O discurso de 1976 é particularmente bonito, com o presidente derrotado, sem voz, a rapidamente passar a palavra à Primeira-Dama, Betty Ford, para ler a sua carta ao novo Presidente:

«Caro Jimmy:

É agora claro que venceste a nossa longa e intensa luta pela Presidência. Felicito-te pela tua vitória. Como alguém que teve a honra de servir o povo desta grande terra, tanto enquanto Congressista, como como Presidente, acredito que devemos agora pôr para trás de nós as divisões da campanha e unir o país, uma vez mais, na busca comum da paz e da prosperidade.

Embora continuem a existir divergências quanto aos melhores meios e formas a utilizar na prossecução dos nossos objetivos, quero assegurar-te que terás o meu total e sincero apoio quando prestares juramento no próximo mês de janeiro.

Comprometo-me igualmente a assegurar-te que eu e todos os membros da minha Administração faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para garantir que o teu mandato comece da forma mais harmoniosa e eficaz possível».

Por mais que muitos desejassem, a única aposta segura que podemos fazer em 2024 é a de que não iremos ouvir discursos deste tipo a 6 de novembro. Entre ridicularizar os oponentes e identificá-los com os maiores ditadores do século XX, e a memória quente da eleição passada, que terminou contestada da pior forma possível, podemos temer o pior.

Vamos passar uma noite a contar, votinho a votinho, os resultados de cada um dos principais 7 estados-determinantes (assumindo que os resultados de quase 43 já estão definidos). Aceitando que, este ano, as sondagens estão todas dentro das margens de erro, muitas abaixo de 1% de diferença, nos “swing states”, fazendo a república americana tremer.

Muitos dirão que já se passou por pior, que queremos sempre fazer do nosso tempo o “pior de sempre”, as eleições mais históricas e determinantes, e provavelmente terão razão… a História relativiza tudo e, mais rapidamente do que pensamos, estaremos em 2028, novamente no olho de um furacão político. À distância, os rivais políticos são sempre menos assustadores, mas importa ir ler o que se escreveu sobre cada um deles na sua eleição… e importa também não brincar ao Pedro e o Lobo, porque, um dia, o Lobo vem mesmo e temos de guardar os gritos de pavor para os dias certos.

Lembrem-se da “Marcha Imperial”, que John Williams compôs para o Darth Vader da Guerra das Estrelas, usada como pano de fundo contra a campanha de Bush e Cheney, que hoje caminha numa passadeira azul, ao lado da candidata democrata, em defesa da “república”, ao lado dos “rebeldes”. Tentar moderar e aproximar posições é bom não apenas pela saúde da democracia, mas também porque as pessoas tendem a ser mais aquilo que esperamos delas, mesmo quando são os nossos oponentes.

Muitos autores acreditam que, quando se extremaram as posições em processos de nomeação como o de Clarence Thomas (para o Supremo Tribunal, em 1991), isso acabou por transformar um juiz que poderia ser moderado e de compromissos, em alguém mais radical, porque enfrentou uma “frente de esquerda”, do outro lado. Ainda não sabemos se o mesmo acontece(rá) com Kavanaugh, nomeado em 2018, que tem oscilado entre decisões mais moderadas e institucionais, junto do Chief Justice John Roberts Jr., e algumas declarações de voto que abrem espaço a entendimentos mais radicais. O Supremo Tribunal vive hoje uma crise de confiança e deixou de ser um árbitro do sistema.

Não foi assim que se viveu entre os anos 80 e 2000… a “swing justice” principal, a primeira mulher nomeada, por Ronald Reagan, para o Tribunal, Sandra Day O’Connor, que morreu há quase um ano, tentou equilibrar e decidir segundo o espírito da América e foi fundamental para a confiança de cidadãos nos tribunais e para concretizar a ideia que lhe era muito cara de que “é extremamente importante para uma sociedade democrática bem sucedida como a nossa que tenhamos três ramos do governo, cada um com alguma independência e algum controlo sobre os outros dois. É o que está estabelecido na Constituição”.

Gostava de começar esta última semana eleitoral apelando aos exemplos de moderação que, ao longo da História dos EUA existiram: Abigail Adams, Elizabeth Willing Powel, Betty Ford… Sandra Day O’ Connor que nos ensinava, há mais de vinte anos, que «temos cidadãos que não compreendem como funciona o Governo e que estão um pouco ressentidos com ele. Tudo o que fazem é criticar. Não fazem ideia de que podem fazer com que as coisas aconteçam e mudem».

Todos os cidadãos (os americanos e, por cá, também nós) somos responsáveis por conseguir que o sistema que nos governa seja uma república… se a conseguirmos manter.