Opinião

Viegas, o libertário

Há pessoas com esse talento eufórico que dissolve fronteiras entre a arte a vida, que as faz nunca desperdiçar uma oportunidade de performance, que sabem fazer explodir cada instante propício

É uma imensa sorte ter amigos! Um grupo juntou-se para me fazer chegar às mãos um objeto incrível: a “Auto-Photo Biografia de Mário Viegas (não autorizada)”, um livralhão pesado e de grandes dimensões, quase impossível de manejar, que a Tradisom editou no final do ano passado (e reeditou em março deste ano) e que o próprio Viegas fez, em três semanas, quando sabia que o seu fim se aproximava ferozmente, corria o ano de 1995. O livro foi então artesanalmente elaborado, impresso pelo ator numa edição de 80 exemplares policopiados, um peso pesado de quase 300 páginas A3, que Viegas distribuiu por alguns amigos e que apresentou na Sala do Teatro São Luiz. É um álbum de memórias, de fotografias pessoais, de recortes, de comentários, de cartas escritas para ele (Cesariny, Eugénio, Sebastião da Gama, Miguel Rovisco, Luís Miguel Nava, Raul de Carvalho…), de desenhos, de episódios, de viagens, de peças. Agora, um círculo mais amplo tem acesso a esta relíquia. Lê-la é uma hilária e comovente aventura.

A criança António Mário Viegas era uma reencarnação do trisavô que nunca conheceu: Leoni, um ator cómico “inesgotável” e de “excentricidade irresistível”, que trabalhou no Teatro da Trindade, sobre o qual Pinheiro Chagas escreveu um longo artigo que Viegas guardava como um tesouro. Em pequeno, fazia bandas desenhadas, mantinha um diário e montava teatros de marionetas com a irmã. Depois, fez teatro amador em Santarém, começou a dizer poemas, vem-lhe daí a admiração por Maria Barroso e pela coragem com que, proibida de falar, enfrentava a PIDE em recitais. No final da década de 1960, Viegas vem para o Porto e rapidamente o curso de História, que pretendia acabar na Faculdade de Letras, é engolido pelas atividades do Teatro Universitário do Porto e pelos recitais de poesia que se multiplicavam no fervor antifascista, na companhia do Zeca, do Adriano, do Fanhais e de tantos outros. As suas leituras empolgaram salas inteiras, pelo modo de habitar a palavra, de modelá-la, pela escolha do repertório, longe do cânone do bafiento Portugal oficial de então. Depois, a passagem pelo Teatro Experimental de Cascais, dirigido por Carlos Avillez. Mais tarde, a Casa da Comédia; o Grupo de Teatro Hoje; a Barraca (onde se cruza com Boal, “um dos meus maiores mestres”, como escreve, e onde estabelece duradouras parcerias com Céu Guerra e Hélder Costa); o cinema (como em “Kilas, o Mau da Fita”, de Fonseca e Costa); a televisão, nomeadamente com os programas de poesia; a Companhia Teatral do Chiado, a última que funda e em que trabalha. No meio disso, houve ainda tempo para uma nova passagem pelo Porto, em meados da década de 1980, para dirigir o TEP, que estava então sem subsídio, e para várias participações - algumas icónicas - nos cafés-teatro do Realejo, com histórias de noites que se prolongavam até de manhã e chegaram a acabar na Igreja dos Congregados, na missa matinal, a comer hóstias antes do pequeno-almoço (“quero duas!”, terá dito Viegas ao padre no momento da comunhão!).

Viegas é mordaz, com um afiado humor anarquista e trágico. Viegas enfrenta todo o tipo de tabus morais, políticos, sociais e culturais. Os seus artigos de sexta-feira, no Diário Económico (vários são reproduzidos na “Auto-Photo Biografia…”) são deliciosos de tão cáusticos e provocadores (como um, que faz o elogio das “criancinhas que vão ao teatro”, que são todavia verdadeiro “perigo como Espectadores, quer de uma peça dramática, quer de uma peça cómica”). São venenosos, com remoques viperinos generosamente distribuídos (Vasco Pulido Valente, Jorge Silva Melo, Cavaco, Clara Ferreira Alves, Alegre…), sem qualquer preocupação de cordialidade. Mas são também declarações de amor por atores, atrizes e poetas (Maria Barroso, Eunice, Simão Rubim, Ary, Armindo Rodrigues…).

As notícias do espetáculo “Europa Não, Portugal Nunca!” (1994) fazem-nos imaginar o divertimento com as suas tiradas corrosivas, além da coragem de um espetáculo sem rede, só possível para alguém com um imenso talento na arte de improvisar, de estar presente. Que pena não ter podido ver esse espetáculo-conferência-de-imprensa em que apresentava, a cada segunda-feira, a sua pré-candidatura presidencial, respondendo às perguntas do público!

Tenho apenas uma memória muito concreta do dia em que, aos 11 anos, conheci Viegas. Foi na Cooperativa Árvore do Porto, na inauguração de uma exposição de dezenas de objetos do Bucha e Estica, que Viegas colecionava, e que eram pretexto para celebrar o centenário do cinema. A exposição era organizada pela UDP, cujas listas Viegas integrava como candidato independente nessas legislativas. Nesse dia, Viegas trazia consigo, em fotocópias em papel verde-claro, o seu “Manifesto Anti-Cavaco” (guardo ainda um exemplar, com dedicatória, que então me ofereceu!). Foi na inauguração da exposição no Porto que Viegas reagiu a um manifesto contra Paulo Portas escrito pelo então candidato do PS em Aveiro, Carlos Candal. O deputado do PS atacava Portas através de insinuações miseráveis sobre o “lóbi gay”. Viegas, corajoso e límpido, declara na Cooperativa Árvore: “Sou homossexual e estou na política”. Era a sua forma de enfrentar o “nojento manifesto” anti-Portas, ofensivo para “milhões de homossexuais que em todo o mundo sofrem perseguições”. E criticava, também, os apelos que, na esquerda de então, queriam “deixar esses temas fora da campanha”. “Tudo o que tem a ver com o sofrimento humano diz respeito à política”, contrapõe. Estávamos em 1995, ou seja, a vários séculos do tempo presente no que a este tema diz respeito. Não havia ainda Marchas, nem sequer os Arraiais, nem nenhuma associação autónoma LGBT, a primeira lei das uniões de facto teria ainda de esperar vários anos… Viegas, com VIH, morreria poucos meses depois dessa campanha. A 1 de abril, dia das mentiras.

E foi sempre teatro, até ao fim, em permanência. Uma última história, que vem num recorte do Expresso de 29 de abril de 1995. A Antena 1 consegue, nesse dia, um furo jornalístico no noticiário das 8 da manhã. Tinham ligado para casa de Alberto Martins, que era então o líder parlamentar do PS, e anunciam-no em direto. Na rádio, o jornalista pergunta ao interlocutor qual será a sua primeira ação no Parlamento. Resposta do outro lado da linha: “Vou gasear com gás sarin as bancadas dos outros partidos”. Pânico na régie, relata o Expresso, perante declaração tão bombástica! Mas logo outra se segue: o PS ia também apoiar a candidatura de Viegas à presidência, anuncia o entrevistado, e, escândalo maior, “acabo de saber que Cavaco Silva vai apoiar a candidatura presidencial de Mário Viegas”. O que estava a passar-se? Afinal de contas, era Viegas ao telefone, que tinha ido morar para a antiga casa do líder parlamentar do PS e não pôde desperdiçar a oportunidade. “Teve graça”, escreve Viegas à mão, ao lado do recorte da notícia.

Há pessoas com esse talento eufórico que dissolve fronteiras entre a arte a vida, que as faz nunca desperdiçar uma oportunidade de performance, que sabem fazer explodir cada instante propício, com uma impressionante energia vital, que são caóticas e criativas e excessivas e generosas e nos mostram como o quotidiano pode ser um abismo de vida verdadeira. Eu conheci uma assim, de perto, que não esqueço dia nenhum.