Opinião

Montenegro, a velha conversa dos desempregados “malandros” e as contradições com a Ministra

O está em debate é mesmo uma mudança de fundo para desproteger os desempregados e baixar os salários, ao obrigar quem recebe um subsídio para o qual descontou a aceitar trabalhar por menos

Há uma semana, a Ministra do Trabalho veio à carga contra as regras do subsídio de desemprego. “Não pode haver em Portugal pessoas a ganhar mais por subsídio de desemprego do que se estivessem a trabalhar”, declarou. Instada a clarificar, explicou que "a ideia é evitar que em Portugal possa haver situações em que quem não trabalha na verdade tem rendimentos dados pelo Estado que favoreçam a situação de se manter como está em vez de fazer procura ativa de emprego e trabalhar”.

As declarações da Ministra contêm um equívoco e pressupõem a mudança de um conceito fundamental da lei atual. O equívoco é confundir subsídio de desemprego - uma prestação paga com as contribuições que os trabalhadores fazem todos os meses, em proporção do seu salário - com “rendimentos dados pelo Estado”. É uma distorção que alimenta o preconceito, como se os desempregados estivessem a receber uma prestação de solidariedade, paga por outros, e não a usufruir de um direito social que resulta dos seus próprios descontos passados. A mudança na lei que as declarações da Ministra pressupõem resulta do facto de as regras atuais do subsídio de desemprego determinarem que o valor do subsídio é uma proporção do salário anterior e que se pode recusar um trabalho que faça perder rendimento. Concretamente, a lei protege as pessoas através do conceito de “emprego conveniente”, para impedir que os desempregados tenham de aceitar qualquer proposta de emprego, por qualquer valor, em qualquer lugar, sob pena de deixarem de receber o subsídio para o qual descontaram. Assim, os desempregados têm direito de recusar uma proposta de emprego quando esta não se enquadre naquele conceito de “emprego conveniente”, isto é, quando a oferta não garanta “uma retribuição ilíquida igual ou superior ao valor da prestação de desemprego, acrescido de 10% se a oferta de emprego ocorrer durante os primeiros 12 meses”. Também não têm de aceitar uma oferta que lhes faça perder em deslocações uma soma superior a 10% do salário bruto, ou em que tais deslocações excedam 25% do horário de trabalho.

Mudar isto é voltar à velha retórica da direita que trata os desempregados a partir do princípio da desconfiança - é “gente que não quer trabalhar”... - e desfigura um direito social, tratando-o como uma esmola (que não é!), que pode ser retirada caso o desempregado não aceite trabalhar a qualquer preço em qualquer lugar (o que pressiona para baixo todos os salários). A ter em conta as declarações da Ministra, pode até supor-se que uma das hipóteses é transformar descontos dos trabalhadores num subsídio ao seu próprio empobrecimento. É o que aconteceria caso se impusesse aos desempregados a aceitação de trabalhos com salários inferiores ao subsídio de desemprego, e se utilizasse o subsidio para complementar o valor do salário baixo, para estes “não perdem rendimentos”...

Questionado no Parlamento esta quarta-feira, o Primeiro-Ministro meteu os pés pelas mãos. Disse Montenegro que “o sentido das palavras da senhora ministra não é a desvalorização do subsídio de desemprego” e que a sua preocupação era “com um conjunto de outras prestações”: “não é o subsídio de desemprego mas pode ser por exemplo o subsídio social de desemprego” (que é não contributivo), afirmou.

Só que esta declaração não bate certo. Primeiro: a Ministra falou mesmo de “subsídio de desemprego”, sendo aliás cristalina quando afirmou que a medida "vai envolver uma mexida no subsídio de desemprego, com certeza que vai envolver uma mexida na legislação do subsídio de desemprego". Segundo: sendo o valor médio do subsídio social de 397 euros mensais, não parece que haja muitas ofertas de emprego em que se ganha menos que o subsídio social de desemprego, como se poderia concluir da tentativa de Montenegro de corrigir o tiro… (e se houvesse, seriam dignas de serem impostas?). Terceiro: a confederação patronal dos serviços reforçou, nas declarações feitas peelo seu porta-voz, também nesta quarta-feira, à saída da reunião com a Ministra, o que está em debate na concertação social, quando explicou ter defendido "critérios mais eficazes em termos do que se considera o emprego conveniente e que permite a recusa sistemática [de emprego] dos envolvidos".

Ou seja, o que está em debate é mesmo uma mudança de fundo para desproteger os desempregados e baixar os salários, ao obrigar quem recebe um subsídio para o qual descontou a aceitar trabalhar a qualquer preço, colocando-se novas e inaceitáveis condicionalidades ao exercício de um direito. Montenegro bem pode esforçar-se por tapar o sol com a peneira, que a Ministra e os patrões já desvelaram do que se trata realmente. É grave e tem de ser impedido.