Opinião

Serviço Militar Obrigatório, o grande educador?

O grau de especialização da Defesa é tal que dificilmente um reservista seria chamado a operar qualquer um destes sistemas, sejam radares, aviões de combate ou submarinos

As últimas semanas foram marcadas, inesperadamente, pelo debate sobre o regresso do Serviço Militar Obrigatório (SMO). Este é um debate difícil sobre o qual a opinião pública se polariza, sendo este extremar de posições o inimigo número um do debate sério, com contraditório e com nuances.

Em primeiro lugar, não é claro o que se entende com serviço militar (ou cívico) obrigatório, por não haver propostas concretas para a sua realização. Vamos assumir, para o tempo desta leitura, que este se realizará assim que o cidadão atinja a maioridade e que tem a duração de alguns meses, como é praxe noutros países ocidentais.

Em segundo lugar, vamos tirar a gíria do caminho. Ao longo deste texto mencionarei várias vezes o Conceito Estratégico da Defesa Nacional, que é (simplificando) uma análise do contexto regional e estratégico em que o país se insere, bem como um conjunto de vetores-chave nos quais deve agir. Por exemplo, o Conceito Estratégico português reflete sobre o seu enquadramento na NATO, na União Europeia e na ONU, e só a partir daí parte para o planeamento de recursos. Porque o fazemos assim? Porque não é suposto que o país tenha uma frota infindável de fragatas ou de aviões de combate, é suposto que tenha tantos quanto necessário para cumprir os seus objetivos e missões.

Como em qualquer decisão relativa às Forças Armadas, seja sobre os seus meios ou sobre as suas missões, é essencial identificarmos a priori os objetivos concretos a atingir. Este é, julgo, o motivo pelo qual os inquéritos de opinião são tão polarizados, ou seja, mais do que o interesse nacional ou mesmo o reforço das capacidades de defesa do país, há um sussurro permanente sobre a importância da “tropa” para construir caráter. Podemos admitir que serve esse objetivo, mas então o que está em causa não é uma (legítima) preocupação com a defesa da República, mas sim com a moralidade geracional. Contudo, se há algo que parece óbvio quando ligamos a televisão nestes tempos, é que não há moral no campo de batalha ainda que seja muitas vezes a moral que nos conduz à guerra. Assim, há alternativas que passam pelo voluntariado ou por ações de cidadania de cariz obrigatório que cumprem esse desígnio e que muitos países europeus adotaram, mas essa não é a discussão deste escrito.

É legítimo perguntar, no entanto, porque não aboliram outros países o Serviço Militar Obrigatório. Sumariamente, ou o seu Conceito Estratégico assim o pede ou a Constituição assim o dita. As ameaças que cada nação enfrenta não são idênticas ou sequer parecidas quando falamos de Portugal, da Suécia ou da Áustria, nações com números de habitantes parecidos entre si. Vamos por partes.

A Suécia viveu grande parte do tempo decorrido desde a 2.ª Guerra Mundial sob ameaça do manto soviético e, por isso, quer a Suécia quer a Finlândia evitaram associações à NATO até ao início da guerra da Rússia contra a Ucrânia. Em vez disso, formataram os seus Conceitos Estratégicos e forças armadas para a “defesa total”, ou seja, uma população que não tendo aliados militares só depende de si mesma e que, por isso, se mobilizaria com cidadãos armados e procuraria impingir um custo tão elevado ao agressor que este não chegasse sequer a planear uma agressão. Há outros exemplos, como o da Áustria, que por dever de neutralidade constitucional não pode integrar alianças e que, por isso, dependem de si mesmos, mantendo um sistema misto de serviço cívico e militar.

E nós? Se atentarmos ao quadro de alianças português, a nossa integridade territorial e militar está assegurada pelas nossas Forças Armadas, mas também pela pertença à NATO e à UE, nas quais desempenhamos e lideramos missões de treino e de construção de capacidades de defesa. Se o quadro de ameaças que o país analisa se foca em países geograficamente distantes – partindo do pressuposto que não estamos perante um risco de invasão de Espanha, que é nosso parceiro na UE, na NATO e, já agora, o maior parceiro comercial – é possível que um mecanismo de “defesa total” seja dispendioso e não cumpra nenhum objetivo militar.

Pode muito bem ser ambição nacional ter uma pequena força expedicionária que intervenha e se mobilize rapidamente em teatros de guerra nos quais participamos com os nossos aliados. Se assim fosse, as nossas vocações atlântica e marítima assumiriam importância, bem como o recrutamento profissional para a Marinha e para o Exército e a aquisição ou construção de embarcações e meios de combate terrestre. Por outro lado, pode igualmente ser nossa ambição a proteção de interesses vitais da República e dos seus aliados, como a proteção de cabos submarinos, que nos obrigaria a um reforço dos meios navais (que em boa verdade está em curso). Se porventura acharmos que os riscos vêm sob a forma de ataque informático ou de projéteis de longo alcance (i.e. misseis balísticos) então a prioridade seria a do reforço da capacidade de ciberdefesa e de sistemas de deteção e bloqueio, o que justificaria um maior investimento nas capacidades informáticas, aéreas e espaciais.

Todos os casos que mencionei acima são hipotéticos (e boa parte afortunadamente improváveis), mas todos têm algo em comum: o grau de especialização da Defesa é tal que dificilmente um reservista seria chamado a operar qualquer um destes sistemas, sejam radares, aviões de combate ou submarinos e, por isso, o Serviço Militar Obrigatório não seria útil.

O novo Conceito Estratégico de Defesa Nacional foi apresentado ao parlamento em 2023, mas não o discutimos na legislatura que cessou. É tempo de o rever e aprimorar a discussão, decidir e avançar. O Serviço Militar Obrigatório poderia até ter um efeito positivo nas contratações dos ramos, mas também o teria no aumento dos salários, no cumprimento do tempo de missões, no quadro permanente de praças com carreiras mais longas e estáveis e no reforço das condições e meios das Forças Armadas.

Resistamos à tentação de usar um expediente de ameaça externa para não resolver estas questões: foi o desejo de alcançar paz que nos trouxe a revolução da liberdade e é para proteger a liberdade que devemos investir na Defesa Nacional.