No país em que o fascismo nunca existiu, o neoliberalismo também nunca foi ensaiado. De acordo com as memórias do primeiro presidente da Iniciativa Liberal (IL), Miguel Ferreira da Silva, os anos de 2011 a 2015 representaram uma “oportunidade perdida”, pois “já que está a doer, por mais um bocadinho fazíamos todas aquelas reformas estruturais” que a IL ambiciona. É somente através desta mundivisão radical, em que a crise global de 2008 e os anos da troika nunca existiram, que se consegue insistir, como no programa eleitoral da IL, que um “verdadeiro bloco democrático deve traduzir-se num bloco comercial”, ou que para “colocar Portugal a crescer, é imprescindível ter uma justiça que não seja um entrave ao desenvolvimento económico”. Torna-se, portanto, imperativo ler a letra miúda do contrato que é o programa eleitoral desta grande empresa. Foi o que fiz.
A minha previsão feita em 2022 de que a IL procuraria camuflar políticas impopulares recorrendo a linguagem metafórica não só se materializou como foi levada ao extremo. Por exemplo, os “choques” passaram a ser “reformas” e “desregular” significa agora “descomplicar” ou “desbloquear”. Como exercício adicional de ofuscação, muitas das propostas são agora ainda mais vagas, como a promessa de eliminar vários ministérios, sem explicitar quais. Há também medidas elucidativas que foram cuidadosamente ocultadas do sumário do programa eleitoral, como a rejeição da “criação de um imposto sobre as heranças”, o que é invulgar num partido que se bate pela meritocracia. Mantém-se, ainda assim, a táctica de mencionar políticas neoliberais implementadas de forma avulsa em vários países, omitindo o facto de que a sua execução conjunta estar a ser efectuada num único estado, a Argentina, que tanto entusiasmo tem gerado entre as nossas hostes neoliberais.
Não obstante, o anarco-capitalismo transforma-se em anarquia lógica quando se quer “reduzir o papel do Estado ao de regulador” enquanto se insiste também em “desbloquear” ao ponto de ser propor um “pré-licenciamento urbanístico automático”. Caso surjam problemas pósteros, a culpa será sempre do Estado por não regular o que tinha desregulado.
Seguindo esta coerência lógica e linguística, na “reforma” laboral da IL, o termo “flexibilidade” e seus derivados aparecem repetidos onze vezes, quando bastaria utilizar “precariedade”. Na Saúde, para além do axioma das PPPs e da “concorrência”, exige-se “liberdade de escolha”, “liberdade de acesso”, “liberdade de gestão”, liberdade para os profissionais de Saúde” e “liberdade para os reguladores independentes”. Viva la libertad, carajo!
No meio deste oceano imenso de liberdade, as farmacêuticas não foram esquecidas. “Portugal é um dos países da UE com preços de medicamentos mais baixos” e, por conseguinte, “pouco competitivo”. Urge, então, aumentar os preços dos mesmos, suportados pelos impostos de todos. Na verdade, o nome do projecto da IL para a Saúde - “SUA-Saúde” -, apresentado sob o olhar atento e aprovador da CEO do grupo Luz Saúde, é genuíno: será benéfico para ela.
A pobreza semântica da IL é proporcional à sua penúria de pensamento. De facto, começam a escassear as formas de apresentar a flat tax, essa cornucópia fiscal para os mais ricos. Dissecar mais uma vez as virtudes da taxa plana faz tanto sentido como debater as do terraplanismo.
Contudo, o expoente máximo do revisionismo suave da IL reside na sua (não-)política ambiental. Num mundo em emergência climática, é-nos garantido que “não serve o alarmismo nem o negacionismo”, mas sim “um mercado de energia ágil”, ou seja, desregulado, onde “devemos evitar intervenções extemporâneas nos preços ou derivas populistas sobre os lucros”. Não apenas isso, mas também se deve reavaliar a “utilidade e proporcionalidade de muitas taxas ambientais.”
Pode não ser verde, mas o mundo dos neoliberais lusos é certamente cor-de-rosa: a especulação não existe e as prioridades passam por “liberalizar a legislação de alojamento”, criar PPPs nas residências universitárias e “despenalizar o AL”, “cujo impacto no mercado de habitação é residual”. Tudo isto num país com 2% de habitação pública.
Sobre o mercado energético, a IL concede que “a eletricidade permanece cara”, mas que “a intervenção direta nos preços não é uma boa solução”. Antes pelo contrário, a “livre circulação” destes bens que “constituem fontes inesgotáveis de prosperidade (…) dão força a todos os que nela participam”, isto é, as grandes empresas. A defesa das elites prossegue imparável com a proposta de eliminar a “contribuição extraordinária sobre o setor energético” que, mesmo tendo em conta que os lucros da GALP tenham atingido um recorde de mil milhões de euros, não deixa de constituir “um perigo silencioso para a economia nacional.” É um pouco como o colesterol, mata lentamente.
Muitíssimo mais urgente é a situação “insustentável” (para meados da década de 2060, segundo a IL) da Segurança Social, cuja “capitalização” e consequente implosão deve ser executada no imediato. A aversão da IL ao Estado Social é de tal ordem que nem a consegue mascarar quando assevera que são os “custos suportados pela entidade empregadora com a Segurança Social” que impede as empresas “de pagar melhores salários”, visto ser prática habitual entre as multinacionais a de celebrarem as subidas de lucros e descidas de impostos com aumentos. Nos dividendos.
A obsessão da IL em privatizar monopólios naturais cuja aquisição se encontra apenas ao alcance de uma ínfima elite diz-nos muito acerca da natureza deste partido. Já a privatização da RTP e demais empresas estatais é também justificada com a sua inquinação pelo poder político, deixando implícito que o privado é por definição apolítico, como pode constatar qualquer ouvinte da Rádio Observador.
Sempre vigilante contra o Estado, a IL promete também tornar público o número de “funcionários (públicos) em cada função, quanto trabalham, qual o seu desempenho é, a sua avaliação e quanto ganham”. Pergunto: farão o mesmo com os privados subsidiados pelo Estado? É que, segundo o programa da IL, estes deverão multiplicar-se, mesmo que isso implique uma ainda maior incongruência dialéctica, visto que o PRR deve ser “alterado para incluir” “incentivos fiscais” e não “investimentos em obras públicas”, excepto para o seu Plano Ferroviário Nacional. “Nesta visão, o Estado foca os seus recursos no financiamento de políticas públicas, deixando a operacionalização para as empresas especializadas.” Ou seja, o Estado constrói e o privado lucra num projecto de transferência massiva de fundos públicos para o privado. Existe também um plano para a criação de “Zonas Económicas Especiais de baixa fiscalidade no interior”, reproduzindo-se assim a zona franca da Madeira, que tantos salários emocionais tem gerado para os insulanos, que também lideram a taxa de risco de pobreza nacional.
Sem apresentar números, e no meio de tanto maná para os mais ricos, a IL promete também orçamentos com superavit. A ser verdade, teremos uma austeridade que faria Salazar corar de inveja. Ora vejamos: o desígnio de abolir o salário mínimo nacional mantém-se e se, em 2022, o plano passava por substituí-lo por um salário mínimo municipal, este deve ser agora aplicado por “sectores”. É a evolução na continuidade. A isto juntar-se-á uma “função pública mais pequena e eficiente” através de despedimentos colectivos e de uma “contratação mais ajustada à realidade das relações laborais no séc. XXI, que pressupõem cada vez menos empregos para a vida”. E se, no século XIX, o trabalho infantil era uma excelente forma de injectar competitividade no mercado, mutatis mutandis, a IL propõe agora “promover a participação no mercado de trabalho de pessoas em idade de reforma”, adaptando a legislação “para que exista uma maior facilidade na cessação do contrato de trabalho”. Com um exército de desempregados privados de apoios sociais (querem-se “contribuintes em vez de subsidiodependentes”) a competir com septuagenários por trabalhos precários e sem salário mínimo nacional, o futuro é mesmo um regresso ao passado.
A pobreza não só é fomentada como também é instrumentalizada pela IL, o que explica o uso de termos tão exóticos para o partido como “igualdade” e “justiça”, sempre com o acréscimo de qualificativos. Assim sendo, a “igualdade de oportunidades” serve para justificar a subsidiação do ensino privado; acabar “com as atuais discriminações” no trabalho implica a “uniformização das relações de emprego públicas e privadas”, ou seja, a uberização dos funcionários públicos; as políticas sociais na habitação “agravam a injustiça social”, portanto deve-se eliminar os impostos sobre o imobiliário. No meio desta manipulação crassa de linguagem emancipatória como meio de promoção de políticas regressivas, há uma única medida de apoio social. Mas ainda assim a IL consegue encontrar forma de privilegiar as elites: as rendas acessíveis aplicam-se somente, e durante um período de cinco anos, aos imóveis que o Estado decida vender a privados. O sofrimento continua a ser um óptimo negócio.
O programa da IL corporiza a ambição maior do neoliberalismo português: a declaração e a negação simultânea da luta de classes. Dois exemplos bastarão. Aquando da eclosão da guerra da Ucrânia, Crespo de Carvalho, professor do ISCTE, exortava-nos a explorar refugiados ucranianos, na sua maioria mulheres desesperadas e com filhos menores à sua guarda, pois “não têm forma de exigir muito, mas trabalharão muito”. Umas semanas mais tarde, Mário Amorim Lopes, um entre muitos turiferários da IL e hoje cabeça de lista do partido por Aveiro, teve a refulgente reflexão de que a reversão do direito ao aborto nos EUA “terá pouco efeito, porque a concorrência entre estados fará com que a mulher possa sempre fazer o aborto num estado em que esteja legalizado”. É-nos dito que a classe social é um conceito obsoleto, mas, simultaneamente, que vivemos numa sociedade onde uma mulher, dependendo da sua condição económica, tanto pode ser uma cliente como uma mercadoria. Coligada com a AD, a utopia de poucos promete tornar-se na distopia de muitos.