“Envelhecer é um pecado”. A sentença é de Madonna. Ouve-se num dos interlúdios da digressão que passou recentemente por Lisboa. Pela primeira vez, desde 2012, Madonna sobe a palco de braços nus, descobertos, mostra a pele do tronco de uma mulher de 65 anos. Acontece num acto do espectáculo dedicado à sexualidade.
A fotografia neste artigo é uma referência à Blond Ambition Tour, de 1990, quando simulou masturbar-se em palco. Passados 33 anos, na Celebration Tour, volta a fazê-lo. Deita-se com uma bailarina caracterizada de si própria, mas com uma máscara de látex, que lhe rouba a identidade para nos fazer questionar sobre que fantasma é aquele. Sem traços definidos, plastificado. É esse fantasma que toca na zona genital de Madonna. Quatro mãos entrecruzadas, de Madonna e da bailarina, com ligaduras, assumindo que a sexualidade também é espaço de combate na nossa sociedade.
Passado contra presente - o duelo da carreira de Madonna, 40 anos depois da estreia. É um confronto travado em palco, num concerto cheio de paradoxos: se, por um lado, quem tem bilhetes para os sectores mais próximos lhe consegue ver as imperfeições físicas, a realização das imagens, nos ecrãs, ou o tratamento de voz estão milimetricamente pensados para proteger a sua persona.
Ao longo da última década, a violência tem sido um tema central no seu trabalho. Aborda sistematicamente a posse de armas nos Estados Unidos e tem, sobretudo, falado na violência contra as mulheres. Talvez o tenha feito sempre, mas agora é uma sexagenária a despir-se em frente de milhares de pessoas, que continua a lutar pela sexualidade e o prazer feminino, sem tirar o foco do idadismo e da opressão física.
Em 2012, na MDNA Tour, despia-se em “Like a Virgin” e “Love Spent”, ficando apenas em lingerie. Fazia um dueto com um dos bailarinos, que lhe colocava um espartilho, apertando-o, e Madonna gemia como se lhe faltasse o ar. Depois, caía ao chão, rastejando até ele. Era simbólico ver a mulher mais bem sucedida de sempre na música prostrada por um homem, nua, a representar total dependência e submissão num acto de vulnerabilidade, em vez da força a que nos habituou.
Momentos antes, nesse espectáculo, a encenação era de um clube nocturno liderado por si - a dominar o exército de bailarinos com lascividade. Quando começava a tirar a roupa, ainda em força, exibia nas costas uma tatuagem que dizia “NO FEAR” (“SEM MEDO”) mas que, com o decorrer da digressão, ia passando mensagens diferentes.
A tatuagem mais marcante, para mim, foi na Argentina: “EVA”. Mostrava um paradoxo, entre a sua interpretação de Eva Péron, figura maior de um regime totalitário, na longa-metragem “Evita”, e do pecado original cometido por Eva - uma mulher, responsável por amaldiçoar o mundo ocidental. Despida, nessa noite, Madonna trincou simbolicamente uma maçã.
Estamos em 2023 e as suas causas dos anos 1980 mantêm-se prementes. Na Altice Arena, vimo-la dançar “Vogue” enquanto passava imagens de activistas históricos LGBT, como Marsha P. Johnson. “Vogue” é força, liberdade e redenção, mas Madonna sabe que também é resistência. A luta não acabou e tanto celebra as conquistas como, mais uma vez, se coloca no papel da mulher violentada. Depois de “Vogue”, avança para “Human Nature”, sendo presa nos braços e pernas por cintas que se vão apertando, simulando a repressão.
Madonna entrou na minha vida há 16 anos, quando estava prestes a completar os meus 14. Com ela, descobri mais sobre arte, estética, brio, mas sobretudo sobre causas sociais: religião, feminismo, sexualidade. Questionou tudo em que acreditava e não me deu respostas. Só pontos de interrogação.
O que sempre me apaixonou foi o intelecto, a estratégia e a mensagem. Por mais que os últimos 15 anos possam ser vistos como um tempo de declínio, para mim, que não tive outra realidade, foram uma aprendizagem sobre mim e o mundo.
Perco-me em conversas com a geração à qual não pertenço, aquela que a viu ser excomungada pelo Vaticano três vezes; que a viu lançar o teledisco de “Like a Prayer”, a beijar um Jesus negro e a dançar em frente a cruzes em chamas; que viveu em primeira mão a espiritualidade de “Ray of Light” e a euforia de “Confessions On A Dance Floor”. Acompanharam-na com toda a glória e vigor. Hoje, sem lançamentos desta magnitude, não consigo imaginar o que será para Madonna viver na sua própria sombra. A fasquia é alta mas foi ela que a criou.
Madonna é um exercício semiótico permanente. Um exercício histórico de reconhecimento dos nossos erros e da reinvenção do ser humano. É um exercício de sobrevivência e tolerância. No concerto ouve-se na sua voz: “a coisa mais controversa que fiz foi manter-me por cá”.
O espectáculo que vimos em Lisboa é tremendamente imperfeito, mas este texto é sobre aquilo que é capaz de despertar, sobre corpos que são políticos e direitos que continuam por conquistar. A sua carreira é um exercício de manutenção da democracia - sempre em risco de colapso e a precisar da nossa atenção.
Madonna merece ser celebrada hoje, em vida. Por mais que esconda a sua imagem nos ecrãs, fotografias e filtros de redes sociais, em palco expõe os braços de uma mulher de 65 anos que se orgulha da sexualidade. Nesses instantes, é a mulher inteira que queremos recordar, com quem temos muito a aprender.
Na igreja, aprendi que o corpo é um templo para cuidar e nutrir. A dicotomia impõe-se quando o prazer e a diversidade são rejeitados. Madonna trouxe-me, a mim e a muitas pessoas, a aceitação deste corpo: diverso, político, mutável e imperfeito. Do qual tiramos prazer sem o objectificar. Porque não é um objecto - é mesmo um templo, e, num templo, celebra-se.
Madonna é uma figura central no idadismo contemporâneo: é vítima da sociedade e de si própria. Da fragilidade que o tempo impõe ao corpo e como precisamos de aceitar a vulnerabilidade que isso implica no dia-a-dia. Continua a criar momentos artísticos brilhantes como aquele que vemos nesta fotografia, confrontando o presente com o passado. Mas quão pesado é este confronto para o ego?
A aceitação da nossa vulnerabilidade é um vaivém permanente. Um exercício de humildade difícil e que talvez se torne mais duro para quem já teve o mundo inteiro na palma da mão. Já não tem, mas porque é que isso interessa? Tem 40 anos de história para celebrar e com os quais se aprende. Todos podemos fazer isso com as nossas vidas.
Envelhecer é um pecado. É assim que a sociedade encara o envelhecimento, entrando, muitas vezes, numa espiral de repressão e isolamento social patente em Portugal. Envelhecer precisa de ser um processo natural, tal como viver com deficiência, a nossa sexualidade, cor de pele ou um credo.
Em 2023, a imagem de Madonna continua a levar-nos por caminhos de aceitação e questionamento. Porque Madonna é uma revolução e a revolução é imortal.