Opinião

Colocar a representação ao serviço da representatividade

Onde está a possibilidade de uma pessoa com deficiência representar ao lado de uma pessoa sem deficiência? De uma pessoa negra colaborar com uma pessoa branca?

“E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados (...) que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa”.

Lélia Gonzalez

Quando, em Janeiro de 2023, Keyla Brasil subiu ao palco do Teatro São Luiz num alerta para o movimento Transfake, os murais de redes sociais e colunas de opinião foram repletos de visões polarizadas do acontecimento. Li, mais que uma vez, sem conseguir precisar autores, que “a vitória da representatividade é a morte da representação”. Primeiro achei curioso, bem escrito, depois achei perigoso.

Vivemos numa sociedade mediática pautada pelas narrativas que procuram, cada vez mais, dar espaço a quem vive nas margens. Pessoas negras, com deficiência, LGBTQ+, migrantes e sim, ainda, as mulheres. A arte, o cinema, a televisão, devem criar-nos utopias que nos permitam tirar pedaços desses retratos para construirmos as nossas vidas.

Este texto questiona a representação e a representatividade, se podem avançar com paridade, e que responsabilidade têm para a transformação da sociedade. Como escreve Lélia Gonzalez: “o lixo vai falar, e numa boa”.

Viola Davis tem sido uma figura central na valorização do trabalho de artistas afro-americanos. Ganhou um Óscar e um Tony com “Fences”, um Emmy com “How To Get Away With Murder”. Tem sido vocal sobre a valorização da sua carreira e atinge o sucesso comercial já depois dos 45 anos, assumindo publicamente que a sua valorização económica, por ser negra, é inferior ao que seria se fosse branca.

Em “Fences” (2016) e “How To Get Away With Murder” (2014-2020) Davis interpreta papéis surpreendentemente imperfeitos, resilientes e vulneráveis. São películas lideradas por argumentistas e realizadores negros, ao contrário, por exemplo, de “The Help” (2011), que protagonizou e disse, mais tarde, ter-se arrependido. Ainda acho bonita a história desse filme, mas compreendo ser uma narrativa que perpetua o estereótipo da mulher negra como empregada doméstica, que cuida de crianças, e é amparada pela caridade da mulher branca colonialista.

Viola Davis tem feito um percurso de resgate e valorização do seu trabalho pessoal ao lado da comunidade a que pertence, fazendo da cor da pele, além de orgulho, uma oportunidade para criar um mosaico de experiências. Sempre a colocar o dedo na ferida.

A discussão na comunidade LGBTQ+ é igualmente pertinente. “Paris is Burning” é o documentário de 1990, de Jennie Livingston, que entra na subcultura do ballroom e das pessoas trans. Criou debates polarizados, alguns defendem o objecto, outros criticam-no. Para mim sempre foi um murro no estômago ver o filme, pela sua dureza, a exclusão social, a pobreza, a prostituição mas hoje, também, a estereotipização. No filme, ouvimos relatos de uma procura de normatividade, de pertença a uma sociedade que resiste a criar espaço para estas pessoas.

bell hooks publicou “Is Paris Burning?”, uma crítica em que descreve a sua ida ao cinema, onde só encontrou pessoas brancas, que se riam dos testemunhos, que gritavam e se divertiam, que encararam o filme como puro entretenimento. Questiona-se se terá a realizadora valorizado a comunidade que lhe abriu as portas expondo a vulnerabilidade.

Estamos em 2023 e a crítica de hooks mantém-se pertinente mas, por outro lado, o documentário não perde relevância. Contudo tenho de concordar que, além da exposição, ou talvez sobreexposição, nada foi dado àquela comunidade em 1990, mas em 2018 estreou “Pose”, uma série romantizada sobre a cultura do ballroom e as suas vidas.

Foi um ponto de viragem na representação da comunidade, com um elenco de pessoas LGBTQ+, remuneradas pelo seu trabalho, que está no circuito mainstream, com distribuição mundial no streaming. É uma série de reparação histórica, que se situa entre o fim dos anos 80 e 90, que tem a prostituição, a pobreza, mas também tem glamour, família, prosperidade económica. É um agregado de tudo o que a comunidade viveu nas últimas três décadas e do que gostava de ter vivido. É uma utopia, que nos faz sonhar a criação de um futuro diferente, valorizando o presente sem negar o passado.

No movimento das pessoas com deficiência ecoa o “nada sobre nós sem nós”. Acho, na verdade, que ecoa em todas as comunidades marginalizadas. E deve ecoar. Mas até que ponto? Onde está a possibilidade de uma pessoa com deficiência representar ao lado de uma pessoa sem deficiência? De uma pessoa negra colaborar com uma pessoa branca?

Tenho passado 2023 a pensar na representatividade e como pode ser trabalhada nas pessoas com deficiência. Vejo-a mais robusta noutras comunidades: artistas LGBTQ+ em palco, actores negros no ecrã, mulheres em cargos de chefia. Não vejo pessoas com deficiência em nenhum destes circuitos.

É certo que “Crip Camp” é um marco para o retrato da evolução dos direitos de pessoas com deficiência, na bolha que é a Califórnia, extrapolada para o mundo. Também tivemos “CODA” a ganhar o Óscar para melhor filme em 2022, com actores Surdos nos principais papéis. Temos mais actores autistas e consultores em séries sobre a temática (como “Atypical” ou “As We See It”). Em Portugal, temos colectivos artísticos, como o Dançando com a Diferença ou a Terra Amarela, que tem dado espaço a actores Surdos para protagonizarem peças integralmente em Língua Gestual Portuguesa. Existem conquistas, não podemos negá-lo.

Quando “Zoo Story” estreou no Teatro Nacional D. Maria II, em 2022, lia uma entrevista do seu encenador, Marco Paiva, e dizia duas coisas marcantes: que é preciso empregar as pessoas com dignidade e depois formá-las (ao invés de formar antes de empregar); e que a deficiência precisa de deixar de ser tratada com exotismo pela sociedade.

Hoje é impensável colocar um homem branco a representar o papel de um homem negro, mas isso já aconteceu no passado. Se recuarmos mais, no tempo de Shakespeare, as mulheres eram representadas por homens no teatro por não ser considerado digno serem actrizes. Questiona-se, hoje, em simultâneo, se pessoas LGBTQ+ podem ser representadas por pessoas que não integrem a comunidade. Na deficiência a discussão ainda é pueril. Tem tração nas artes performativas mas está longe de chegar ao mainstream.

Há 10 anos atrás vi “Forrest Gump”. Agora, revi o filme para perceber que opinião tenho com tudo o que vivi entretanto. A deficiência não é retratada deliberadamente no filme, há uma referência ao QI da personagem e depois a narrativa coloca-o como herói. Tem um quê de exótico, sim, mas também transmite algo de extraordinário. Forrest é um homem admirável e a sua deficiência intelectual, que o caracteriza, é isso - uma característica.

O filme, em 2023, tem um quê de datado e capacitista, não podemos negá-lo. Talvez seja demasiado heróico, está feito para ser um blockbuster e fazer jorrar lágrimas de admiração. No entanto, não deixa de ser a história de um homem com deficiência que se cruza ao longo do filme com as maiores figuras da sua sociedade (Nixon, Lennon, entre outros), que usa ténis Nike, tem desejo sexual, apaixona-se e tem um filho. (Foi particularmente relevante ver Forrest ter um filho quando reflectimos sobre o problema da esterilização das pessoas com deficiência, e em especial com deficiência intelectual ou neurodivergência, em Portugal.)

Forrest Gump é interpretado por Tom Hanks, que ganhou o Óscar de Melhor Actor nesse ano. Por ser um actor sem deficiência, tornar-se-á ilegítimo continuar a ver este filme como um retrato da deficiência? Não creio. Para mim, “Paris is Burning” fez a sua parte na criação de “Pose”. “Forrest Gump” talvez tenha feito a sua parte na criação de “CODA”.

Acredito que hoje o trabalho com as comunidades marginalizadas tem de ser diferente, deve estimular oportunidades, criando paridade entre os mais e menos privilegiados, mesmo que se enfrentem adversidades. Mesmo que seja moroso e exija recursos extra.

A representatividade mediática das mulheres, pessoas negras, LGBTQ+, migrantes, tem de reflectir-se na economia. E não, não se reflecte. Ainda menos nas pessoas com deficiência.

Não podemos usar as pessoas como instrumentos de comunicação sem que tenham as ferramentas para se defender na esfera pública. Isto não só se fez deliberadamente, durante décadas, como ainda se faz mascarando as retribuições com rótulos de voluntariado e boa vontade. O problema excede largamente a cultura, contamina toda a sociedade e economia com estágios, recibos verdes e trabalho mal remunerado.

Hoje a representatividade tem de ser trabalhada com interseccionalidade. Não creio que seja sensato ou sequer legítimo excluir os ditos privilegiados, só temos de criar um espaço seguro de diálogo e valorização, social, política e económica, daqueles que historicamente foram reprimidos. Talvez precisemos de mais quotas porque a meritocracia é uma ilusão.

Este texto começa com a mesma citação com que Djamila Ribeiro, filósofa e activista brasileira, abre “Lugar de fala”, que repito uma parte pela terceira vez: “o lixo vai falar, e numa boa”. Já não deixamos que falem por nós, temos voz, sempre a tivemos, e finalmente alcançámos os media. Nessa obra, Djamila escreve que todos fazemos parte diálogo: “todas as pessoas têm lugar de fala, pois estamos falando de localização social. E, a partir disso, é possível debater e refletir criticamente sobre os mais variados temas.”

É tempo de colocar a representação ao serviço da representatividade. Precisamos de escuta activa e sentido crítico. E isto é possível. Querem um exemplo? Olhemos para a literatura lusófona.

Durante quantos anos celebrámos histórias de Angola e Moçambique contadas por autores brancos? Não escrevo isto com desprezo por escritores que estimo, também eu sou um homem branco a fazer esta reflexão, mas precisamos de assumir que partimos de um lugar privilegiado nestas representações. Não é, necessariamente, uma experiência de representatividade. O equilíbrio é imperativo.

Em 2021, o Prémio Camões foi atribuído à moçambicana Paulina Chiziane. Hoje, com 68 anos, vê o seu nome reconhecido em Portugal como não tinha acontecido antes. Tornou-se mediática e tem honras de Estado. A sua obra começou a ser publicada em 1990 mas há um novo destaque nas livrarias portuguesas com o Prémio Camões. Porque é que durante tantos anos preferimos ler as páginas de autores brancos sobre, por exemplo, Moçambique ao invés de uma mulher negra e moçambicana? Com Chiziane temos um exemplo de pura representação ao serviço da representatividade.

Como se cria o mosaico da nossa cultura, da diversidade, em 2023? Não acredito num panorama onde só a pessoa que integre um destes grupos, como Chiziane, possa criar representações, é importante respeitar a liberdade de experiências e um livro de um autor branco tem a sua legitimidade. Um cenário não deve categoricamente eliminar o outro.

A representação foi durante muito tempo a única forma das maiorias acederem a cenários que retratavam as margens da sociedade. Na literatura, no teatro, no cinema. Hoje tudo mudou. Chegamos a um lugar de fala onde, finalmente, as margens conquistaram o seu espaço e podem criar as suas representações, enriquecendo a diversidade.

Ainda escreve Djamila Ribeiro: “há pessoas que dizem que o importante é a causa, ou uma possível “voz de ninguém”, como se não fôssemos corporificados, marcados e deslegitimados pela norma colonizadora. Mas, comumente, só fala em voz de ninguém quem sempre teve voz e nunca precisou de reivindicar sua humanidade”.

Acredito, profundamente, que o caminho se faz lado a lado com respeito mútuo. A camaradagem pode existir sem palmadas de condescendência. A riqueza que esta pluralidade nos traz, em paridade, transforma a sociedade. A vida tem sempre capacidade de progresso, reparação, autenticidade e, talvez, mais verdade.