Opinião

O rinoceronte na sala

Os que se dedicam a comparar desfavoravelmente Portugal com a Roménia – como faz um recente estudo da Faculdade de Economia do Porto – foram apanhados pela “rinocerite” de Ionesco. Toldados no raciocínio, reproduzem uma fábula

Na sua peça mais célebre, “O Rinoceronte”, o dramaturgo romeno Eugene Ionesco faz-nos espectadores de uma pequena cidade cujos habitantes se transformam em rinocerontes. A “rinocerite”, contraída após a inopinada aparição de um desses paquidermes, impede-os de pensar, tolda-lhes o discernimento e fá-los presas fáceis da manipulação e da impostura. A peça tem sido lida como uma alegoria do totalitarismo.

Os que se dedicam a comparar desfavoravelmente Portugal com a Roménia – como faz um recente estudo da Faculdade de Economia do Porto – foram apanhados pela “rinocerite” de Ionesco. Toldados no raciocínio, reproduzem uma fábula. Mas não é uma fábula inócua. É uma fábula que propaga uma imagem autodepreciativa de Portugal. Uma imagem falsa e venenosa.

A insistência na tese de uma alvorada romena, por contraste com um crepúsculo português, é a enésima encarnação da nossa velha obsessão com a ideia da decadência nacional, que despontou com a geração das Conferências do Casino, em finais do século XIX, e não mais deixou de enfeitiçar uma certa intelligentsia. De tal modo que, perante todas as evidências do desenvolvimento português dos últimos cinquenta anos, ela continua viciada na autoflagelação; ou amnésica, outro sintoma da “rinocerite”.

Alguma dessa intelligentsia acabou por contrair uma monomania: baixar os impostos. É como um pozinho mágico, ou como um desses elixires que, aplicado em qualquer maleita, cura tudo, desde a unha encravada a problemas do foro macroeconómico. É o seu ópio. De tal modo que, no referido estudo da FEP, propõe-se reduzir impostos para competir com países onde estes são mais baixos, omitindo que, nesses mesmos países, o Estado-providência é curto, senão mesmo incipiente.

Não se pode simplesmente comparar Portugal e a Roménia como quem compara pares de sapatos; ou como se o mesmo tipo de sapato servisse a qualquer pé. É preciso perceber que os países do Leste, da “outra Europa”, conhecem hoje dinâmicas que os favorecem por comparação com os países do Sul – dinâmicas análogas àquelas que, no final do século passado, nos favoreceram a nós. Esse modelo de desenvolvimento ficou para trás porque os portugueses escolheram, sabiamente, outro caminho.

Os investidores e empresários encontram hoje na Roménia o que outrora se encontrava em Portugal: mão-de-obra barata, parcas contribuições sociais e uma fiscalidade menos onerosa que nos países mais prósperos e desenvolvidos da UE. A receita já foi tentada connosco. Pelos vistos, há quem queira voltar a meter-nos nesse laboratório.

Oxalá, depois de ter isolado cirurgicamente as comparações menos favoráveis a Portugal, o gabinete de estudos da FEP, numa próxima oportunidade, possa meditar o modelo social e laboral romeno, analisar cientificamente as suas práticas governativas e absorver as opções de desenvolvimento económico e humano desse país modelar, para propor aos portugueses as mesmas soluções.

Em média, os romenos vivem quase uma década menos do que nós. Algumas das suas regiões rurais – onde vive 45% da população – evocam as “terras do demo” de Aquilino Ribeiro, de tal modo que as autoridades se desunharam para vacinar uma minoria, aquando da crise pandémica. Quase metade das crianças com menos de dezoito anos está em risco de pobreza ou de exclusão social. A mortalidade infantil é mais do dobro da nossa. Uma em cada cinco pessoas não tem acesso a chuveiro ou instalações sanitárias. Um terço dos agregados familiares habita em casas degradadas ou em barracas – 60% em condição de sobrelotação. O salário médio é metade do português. O índice de homicídios é quase o dobro do nosso. A Roménia apresenta a mais baixa percentagem de população com estudos superiores em toda a UE, e a taxa mais elevada de abandono escolar. Há cerca de 5 milhões de romenos a trabalhar noutros países europeus. Eis o nível de vida desse país que, como vaticina o sagaz estudo, vai superar em breve o dos portugueses. A menos, claro, que Portugal adote o pacote fiscal do PSD – redigido sob a batuta do atual diretor da FEP, mentor do estudo em apreço. Diz-me com quem nos comparas, dir-te-ei quem és.

À Roménia, que nos deu Ionesco, só podemos desejar que trilhe o caminho que Portugal trilhou nas últimas décadas, com inegável sucesso em domínios como os cuidados médicos, a escolaridade e as qualificações, as energias renováveis, a qualidade das infraestruturas, a assistência às populações rurais, a esperança média de vida, a ciência e a tecnologia, o património e a criação artística, entre vários outros. Felizmente, umas quantas cidades romenas, a começar pela capital, Bucareste, vão já nessa direção. Quanto aos rinocerontes na sala, fazemos votos de melhoras da “rinocerite”.