Quem passa de madrugada nas arcadas da gare do Oriente não pode deixar de se impressionar com o número de pessoas que aí pernoitam, enroladas em cartões ou cobertores. Será um dos certamente muitos pontos da cidade onde podemos ver ao espelho as consequências do capitalismo neoliberal que nos governa.
Enquanto isto acontece, a maioria parlamentar do PS confirma a aprovação de um pacote legislativo que designa pomposamente por “mais habitação” que mais não fará do que manter tudo como está, ou pior, por se recusar a enfrentar as causas reais da crise da habitação.
O aumento das taxas de juro torna insuportável para milhares de famílias os encargos do crédito à habitação. Muitas terão certamente de fazer enormes privações para poder pagar as prestações, muitas outras terão de tentar mudar para uma casa menos dispendiosa, tarefa que se apresenta cada vez mais problemática, se não impossível. Outras ainda terão de desistir de ter casa própria, voltando porventura a casa dos pais. Jovens que tenham a legítima pretensão de se autonomizar, adquirindo casa própria ou recorrendo ao arrendamento, se não forem ricos, esqueçam.
O aumento das taxas de juro é uma transferência direta de milhares de milhões dos rendimentos das famílias para os lucros da banca. O que faz o Governo para evitar isso, limitando os lucros injustificados dos bancos e aliviando o esforço que recai sobre as famílias? Nada. Limita-se a inventar um programa para que se possa pagar um pouco menos agora para pagar mais, mais adiante.
Com os vistos gold (cuja promessa de extinção não era afinal bem assim), com o regime fiscal favorecido dos “residentes não habituais”, com a proliferação do alojamento local, com a aplicação da “lei dos despejos” da autoria da Ministra Assunção Cristas e que o Governo PS se recusa a revogar, as populações são expulsas das cidades e os preços do arrendamento tornam-se insuportáveis. Professores deslocados a dormir em automóveis e estudantes a desistir de estudar por falta de alojamento acessível são exemplos ilustrativos dos tempos que vivemos.
As manifestações que ocorreram em cerca de vinte cidades no passado sábado, mobilizando muitos milhares de pessoas inconformadas com este estado de coisas, são sinais que deveriam alertar o Governo quanto à insustentabilidade da especulação imobiliária e financeira à custa das condições de vida de uma enorme maioria social. O facto de se terem desencadeado algumas operações destinadas a denegrir a justeza de propósitos e a grandiosidade das manifestações com alguns (poucos) vândalos infiltrados a praticar atos de destruição gratuita e alguns (poucos) deputados de extrema-direita a provocar para serem notícia, é um sinal de que os poderes dominantes estão intranquilos com a mobilização popular provocada pela catástrofe social que a crise da habitação está a assumir.
Se o Governo insistir em não limitar os despejos e os aumentos incomportáveis das rendas de casa, em não obrigar os bancos a prescindir de parte dos seus lucros obscenos para permitir que milhares de famílias possam suportar os encargos do crédito à habitação, em não investir recursos suficientes na promoção de habitação pública a custos acessíveis, de pouco vale o marketing legislativo da “mais habitação”. E a luta vai ter de continuar. Não há outro caminho.