Opinião

Análise ao projeto de decreto-lei referente à criação do regime da dedicação plena dos médicos

A solução passaria, necessariamente, por aumentar a atratividade das carreiras médicas (nomeadamente reduzindo de 18 para 12 horas semanais a carga semanal obrigatória em Serviço de Urgência, para além de melhorias na sua remuneração) e, em diploma próprio, criar condições especiais de trabalho no mesmo, em contexto de equipas fixas ou dedicadas

Enquanto se aguarda a publicação da versão definitiva do decreto-lei, já aprovado em Conselho de Ministros, o teor da proposta conhecida merece os seguintes comentários:

1. É injusto. Trata os médicos de forma desigual. O acesso a este novo regime não é igual para todos os médicos. Uns tem e outros não, havendo quotas anuais de acesso e critérios por definir. Mas, seguramente, não será para todos.

2. É, também, injusto, porque os aumentos remuneratórios previstos não são nem iguais nem sequer proporcionais para os médicos que estão em regimes jurídicos diferentes. O aumento é francamente maior para os que estão atualmente em regime de 40 horas semanais do que para todos os outros.

3. É ilegal. Porque diminui vencimentos. Há situações, como por exemplo as dos médicos em regime de 42 horas em exclusividade, nas categorias de assistente graduado e de graduado senior, na posição 2, que por extinção/fusão desse posição passam para a posição 1 da nova tabela, com salários menores (respetivamente, passam de 4.724,90€ para 4.420,07€ e de 5.463,18€ para 5.279,04€).

4. É desmotivador. Além de não se aplicar o suplemento dos 25% do vencimento aos médicos que forem nomeados diretores de serviço ou de departamento, apesar de passarem, obrigatoriamente, ao regime de dedicação plena, o “prémio” que dá por esse acréscimo de responsabilidades é abissalmente diferente se se tratar de um médico que estava em regime de 40 horas semanais (que tem um aumento de 25-30%) ou de um que estava em regime de 42 horas em exclusividade (que perderá vencimento).

5. É desumano. Por um aumento salarial (que é mínimo, nalguns casos), os médicos terão que aceitar trabalhar 18 horas do seu horário normal em serviços de urgência, e ainda aceitar realizar, no mínimo, mais 6 horas suplementares/extraordinárias nesse serviço, sem que haja, por semana, um limite máximo para essas horas, sempre e “quando seja necessária ao funcionamento de serviços de urgência” (até atingirem as 250 horas extraordinárias do ano)!

6. É abusador. Porque retira o direito a descanso compensatório (com prejuízo do horário, ou seja, descontando nas suas horas de serviço) quando os médicos realizarem trabalho noturno, direito esse que está estabelecido pela ACSS desde 2014-2015.

7. É omisso. Não inclui os médicos da Medicina Legal, da Medicina do Trabalho ou da Emergência Médica.

8. É enganador. Os médicos de Saúde Pública e os nomeados para cargos de direção não irão receber o suplemento de 25% do vencimento.

9. É autoritário. Exige que a acumulação de atividade assistencial, subordinada ou autónoma, em entidades privadas ou do setor social, por parte de médicos que se encontrem em regime de dedicação plena, dependa de “autorização pelo órgão máximo de gestão do serviço ou estabelecimento de saúde”.

10. É ilusório. Não contém, para muitas das categorias e regimes, nenhum aumento de vencimento significativo ou que reponha o poder de compra perdido nos últimos anos.

11. É ineficaz. Porque não resolverá os problemas do acesso a consultas nem a cirurgias, desde logo porque o horário dos médicos se manterá inalterado (é de 40 horas desde 1 de janeiro de 2013) e continuará, maioritariamente, a ser consumido em serviços de urgência, restando poucas horas para a restante atividade clínica.

O alargamento do modelo dos Centros de Responsabilidade Integrada, que remunera toda a equipa de profissionais de saúde que o constitui, mediante cumprimento de objetivos previamente acordados com a Instituição é uma com um potencial positivo. No entanto, poderá causar, dentro do mesmo serviço ou instituição, desigualdades entre profissionais igualmente meritosos, por ser mais fácil contratualizar os atos de algumas especialidades do que de outras. Isso causará descontentamento, desmotivação e, a prazo, um efeito potencialmente nefasto no sistema.

A manutenção de um “consumo” semanal de 18 horas no Serviço de Urgência (SU), “inventada” em 2012, em plena crise financeira, é uma asneira. É tentar resolver o problema da falta de profissionais dos SU e da falta de profissionais no SNS no mesmo diploma. Desta forma, manter-se-á um importante fator desmotivador das carreiras médicas (a elevada carga horária nos SU) e não se resolverá (tanto como até agora) o problema dos SU. A solução passaria, necessariamente, por tratar estes dois problemas em separado: aumentar a atratividade das carreiras médicas (nomeadamente reduzindo de 18 para 12 horas semanais a carga semanal obrigatória em SU, para além de melhorias na sua remuneração) e, em diploma próprio, criar condições especiais de trabalho nos SU, em contexto de equipas fixas ou dedicadas. Assim, fica “sem pau nem bola”…