Francisco Louçã, na sua crónica semanal aqui no Expresso, a propósito do meu artigo da semana passada, voltou a sublinhar a sua tese do costume: a Igreja, senhora das trevas e do obscurantismo, opõe-se à ciência, a imperatriz da luz. Fá-lo contando algumas pequenas histórias (polvilhadas de algumas ficções) a propósito de Copérnico. Esse mesmo.
O artigo é fácil de resumir. Em síntese, dois pontos centrais, um ponto acessório e um único propósito. Os dois pontos centrais: distanciar, essencialmente, Copérnico da Igreja, da qual foi sacerdote (Louçã reconhece-o, mas não lhe atribui importância); e tomar toda a Igreja pela libido dominandi de uma parte do seu clero. O ponto acessório: salientar o meu suposto fervor religioso, procurando, com isso, desqualificar-me para qualquer debate sério sobre esta matéria. E o propósito único: sublinhar o obscurantismo da Igreja, assente na falaciosa dialéctica (coisas marxistas, deixem lá), que oporia a ciência como luz à fé como trevas.
A tese é tão simplória que, estou convencido, nem os militantes do Bloco do Esquerda acreditam nela. E, no entanto, se calhar acreditam, ou não votariam no Bloco. Mas já cá voltamos.
Imagine agora, o estimado leitor, que alguém lhe dizia que uma partícula que existe abundantemente no nosso mundo, mas que ninguém vê e que a maior parte de nós não faz sequer ideia que existe (aparentemente, cerca de 65 billiões destas partículas atravessam cada centímetro quadrado da superfície da Terra voltada para o Sol a cada segundo), viaja a uma velocidade superior à velocidade da luz. O leitor mais gentil diria que isto é pura ficção científica, o mais severo chamaria louco ao proponente de tão bizarra tese, ao passo que o mais atento chamaria a atenção para a impossibilidade de uma velocidade superior à da luz. Afinal, Einstein postulou um dos pilares da Física moderna: a velocidade da luz é constante e insuperável. As partículas, essas, chamam-se neutrinos, e a tese existe é de um insuspeito grupo de investigadores do CERN.
E a que propósito é que vem esta história? Quem no-la conta é Dennis Danielson e Christopher M. Graney, na Scientific American. O mote? Copérnico, esse mesmo. E a tese, fundada na mais óbvia premissa da história da ciência, é a de que as vicissitudes da teoria heliocêntrica Coperniciana não se podem reduzir a uma narrativa simplista de obscurantismo religioso versus clarividência científica. Porque, sempre que uma teoria nova contradiz o paradigma dominante, a sua aceitação é morosa e carece de provas. Ou seja, no caso Copérnico havia argumentos científicos fortes para que a tese não fosse imediatamente acolhida.
Se Louçã tivesse lido Thomas Khun (o seu camarada Boaventura Sousa Santos leu), designadamente a Estrutura das Revoluções Científicas, mais não fora pela parte daquilo a que - erradamente, diga-se - chama revolução, saberia que, depois de mais de 1.000 anos de paradigma geocêntrico Ptolomaico, uma visão tão radicalmente alternativa levaria tempo a afirmar-se no seio da ciência. Importa referir que a teoria carecia, ainda - e Copérnico sabia-o bem -, de outras teorias complementares que Kepler (já agora, cristão), Galileu (já agora, católico) e Newton (já agora, cristão) se encarregaram de desenvolver depois. No caso de Newton, o homem popularmente conhecido pelo mito da maçã, estamos, claro, a falar da teoria gravitacional, fundamental para dissipar as legítimas dúvidas formuladas - numa aposta errada, mas compreensível - por Tycho Brahe (que, abandonando a Ptolomaica visão, mas considerando impossível que a Terra se movesse, considerando o seu tamanho, propôs a tese de que todos os planetas giravam em torno do Sol e que este girava em torno da Terra).
Voltemos brevemente a Copérnico ao Index e à pulsão (ir)racional do artigo de Louçã. Louçã afirma que só 300 anos depois a Igreja o autorizou. Isso não é verdade. De Revolutionibus Orbium Coelestium foi publicado em 1543; foi proibido em 1616; autorizado, com correcções devido a incertezas científicas e com a indicação de que a teoria heliocêntrica era uma hipótese matemática, em 1620; e a proibição formal do livro foi removida em 1758.
Quer isto dizer que a Igreja é inocente de ter querido controlar a cosmovisão? Não, claro que não. Mas obliterar-lhe o papel fulcral que também teve na formação do pensamento científico moderno – até porque a Igreja é muito mais do que parte do seu clero – resumindo-o a uma externalidade positiva de um obscurantismo e trevas reinantes é tão ingénuo ou intencionalmente enganador quanto crer que a "revolução trará ao povo, não só direito ao pão, mas também à poesia."
Não ilibo, obviamente, a Igreja dos seus erros, já Louçã resolveu imputar-lhe erros exclusivos ocultando-lhe as virtudes. Àquilo chama-se diálogo entre ciência e fé, a isto chama-se populismo.
No meu artigo da semana passada acusei "ateus (muitos contados entre marxistas e trotskistas)" de cherry pickers, que escolhem apenas o que mais lhes convém. Louçã "enlevado pelo seu fervor" anti-religioso "abalançou-se" a dar-me razão. Quod erat demonstrandum.
Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia