Sempre que ocorre a abertura do ano judicial, sempre que se realiza o congresso de algum dos intervenientes no sistema judiciário, ou sempre que ocorre a tomada de posse de alguém que assume um lugar relevante no funcionamento da Justiça, ouvimos falar da necessidade de uma reforma da Justiça. Recorrentemente chegamos a ouvir falar de propostas de pactos para a Justiça que supostamente deveriam envolver governos, deputados, juízes, magistrados do Ministério Público, advogados, solicitadores, agentes de execução, notários, conservadores de registos, funcionários judiciais, de registos, de investigação criminal ou de reinserção e serviços prisionais. O problema é que ouvimos isso há décadas e, não só não vemos nenhuma reforma da Justiça que possa enfrentar os problemas existentes de um ponto de vista estrutural, como nem sequer são adotadas medidas capazes de resolver os problemas mais prementes e imediatos que afetam o funcionamento da Justiça.
O funcionamento da Justiça em Portugal debate-se com tantos problemas que seria demasiado ambicioso pretender abordá-los a todos no espaço de um artigo. Os ângulos de abordagem são múltiplos e qualquer tentativa de, num espaço necessariamente curto, abordar globalmente as soluções necessárias para que o sistema de Justiça possa corresponder às expetativas que sobre ele justamente recaem, seria inglória, e deixaria de fora questões certamente muito relevantes.
Assim sendo, deixo de lado as grandes reformas e prefiro centrar-me em dois pontos: o acesso à Justiça e as condições de funcionamento do sistema.
O maior problema da Justiça no nosso país é que, para a maioria da população, o acesso aos tribunais é uma miragem por falta de capacidade económica para suportar os custos associados a uma litigância por via judicial. É certo que existem julgados de paz que garantem uma forma mais célere e acessível de resolução de pequenos litígios, mas não só não cobrem a totalidade do território nacional (muito longe disso) como se limitam à resolução de litígios de menor importância económica e social, cuja resolução é certamente importante, mas não exclui a necessidade de recorrer aos tribunais na maior parte das situações em que esteja em causa a efetivação de direitos e interesses legalmente protegidos.
É certo que existe um mecanismo de apoio judiciário para cidadãos que possam comprovar junto da segurança social uma absoluta falta de meios para recorrer aos tribunais, só que esse sistema abrange uma pequena maioria dos nossos concidadãos, deixando de fora vastas camadas da população que, vivendo acima do limiar da pobreza, não têm condições económicas para recorrer aos tribunais. A mistura explosiva entre a onerosidade e a morosidade faz com que o acesso à Justiça seja um privilégio para ricos e um sacrifício económico desproporcionado para quem, não sendo rico, não possa beneficiar de apoio judiciário.
Enquanto o Estado não assumir que o acesso à Justiça tem de ser encarado como o acesso a outros direitos sociais, como a saúde ou a educação, este problema não terá solução.
Um segundo problema prende-se com as condições de funcionamento do sistema. Desde há muitos anos que os profissionais do setor alertam para a falta gritante de pessoal nos seus quadros. É um problema comum aos tribunais, aos registos e notariado, à reinserção e serviços prisionais ou à investigação criminal. E não são só os profissionais que o sentem e denunciam. Qualquer cidadão que contacte com esses serviços não pode deixar de se aperceber da dificuldade de funcionamento de serviços onde os anos passam sem que sejam contratados os funcionários necessários para substituir os que se reformam e onde existe hoje um número de funcionários muito inferior ao que seria necessário para assegurar um funcionamento adequado e mesmo muito inferior ao que já existiu antes do triunfo da demagogia neoliberal de que havia funcionários públicos a mais.
Por outro lado, os problemas de estatuto profissional dos funcionários ligados ao setor da Justiça tem sido um folhetim pouco edificante. Vejamos o caso dos funcionários judiciais:
Estes funcionários, tal como os demais funcionários públicos, tiveram as suas carreiras congeladas por longos anos e nunca recuperaram a maior parte do tempo de serviço que não foi contado para efeitos de progressão na carreira. Sofrem também os efeitos do campo de obstáculos que foi erguido para impedir progressões na carreira através de mecanismos injustos de avaliação.
Para além disso, desde há muitos anos que se arrasta o processo de revisão do estatuto dos funcionários judiciais. O problema transitou dos Governos PSD/CDS para os Governos PS, sem resolução. Desde o início de funções do Governo PS em 2015 foram aprovadas disposições em sucessivos Orçamentos do Estado com o objetivo de levar à aprovação do estatuto dos funcionários judiciais, contendo inclusivamente calendarizações que nunca foram cumpridas. Pior: foi resolvido o problema dos estatutos dos juízes e dos magistrados do Ministério Público, inclusivamente no plano da recuperação remuneratória (e bem) e foi deixado para trás (e mal) o estatuto dos funcionários judiciais.
E pior ainda: nem a promessa antiga de integração do suplemento de recuperação processual no vencimento foi cumprida. O suplemento de recuperação processual foi criado nos anos 90 do século passado como forma de compensar os baixos salários existentes, sendo pago apenas em 12 meses, com a promessa de ser integrado no vencimento, o que o levaria a ser pago nos 14 salários anuais. Passaram sete Governos e a promessa nunca foi cumprida.
A questão resume-se com simplicidade: tudo o que implique investimento na Justiça capaz de assegurar maior acessibilidade dos cidadãos aos tribunais, capaz de dotar o sistema de Justiça com o número adequado de funcionários ou capaz de tratar os trabalhadores do setor com o respeito que merecem, esbarra nas “contas certas”. O resto são discursos.