Opinião

O que aconteceria ao mundo se as mulheres entrassem em greve?

Imaginemos que, de repente, as mulheres paravam de desempenhar todo o trabalho doméstico e de prestação de cuidados. O que acontecia ao mundo? Tarefas menosprezadas, porém essenciais à sobrevivência da sociedade, e que recaem desproporcionalmente sobre os braços, mentes e tempos das mulheres. Não é ao acaso que esta quarta-feira, para assinalar o Dia Internacional da Mulher, se realiza também à escala global a Greve Feminista, que incita as mulheres a pararem por umas horas. Porque se as mulheres param, o mundo pára

Foi em 1975 que as mulheres islandesas, fartas da desigualdade de género no seu país e da sobrecarga a que estavam sujeitas, pararam coletivamente. Durante 24 horas, fizeram greve, tanto dos seus trabalhos remunerados, como do tão invisível trabalho doméstico e de prestação de cuidados.

Hoje, a Islândia está na vanguarda de igualdade de género, e foi este o momento simbólico que fez com que as mulheres fossem vistas de outra forma. Porque o país, em muitos aspetos, parou. E muitos homens, pela primeira vez na vida, foram confrontados com a necessidade de realização de tarefas que não faziam parte dos seus quotidianos. Tarefas que deviam ser responsabilidade de todos, mas que elas realizavam sozinhas. A Greve Feminista desta quarta-feira é sobre esta falta de visibilidade, e todas as múltiplas formas de desigualdade que dela advêm.

O mundo, como o conhecemos, em que é que se transforma se não houver quem limpe, organize, cozinhe, alimente e cuide numa base diária? Quem garanta coisas aparentemente básicas, porém essenciais ao bem-estar coletivo, como casa limpa, compras pensadas e feitas, comida na mesa a tempo e horas, miúdos postos a apanhados da escola, devidamente alimentados, com banhos tomados, acompanhados nos seus trabalhos de casa, roupa lavada e arrumada no armário? Quem assegure cuidados de saúde permanentes, seja a crianças, a idosos ou a demais familiares doentes? E no meio de tudo isto, quem ainda arranje tempo para dar afetos e atenção, essenciais à saúde mental, à vida de qualquer ser humano.

Claro, na maioria dos casos, depois de uma jornada do dito “trabalho remunerado”. O que aconteceria se as mulheres – e falo das mulheres porque mostram todas as estatísticas que são elas que fazem isto em larga escala -, simplesmente não estivessem disponíveis para executar tarefas que, por mais que assegurem o funcionamento pleno do país, pecam pela inexistência de reconhecimento? Em pleno 2023, já vai sendo tempo de refletirmos sobre isto.

Ele não “ajuda” em casa, ele faz a sua obrigação enquanto adulto funcional

“Não me posso queixar, ele ajuda imenso lá em casa.” Quantas vezes já ouviram frases semelhantes sobre a gestão das tarefas domésticas e dos cuidados parentais? Como se um homem que limpa a casa onde vive e toma conta dos seus próprios filhos fosse um ser especial. Pessoalmente, eu já perdi a conta. Diz-se isto com orgulho, sem se pensar muito no sentido das palavras, e tantas vezes até a achar-se que é algo bastante positivo. Mas não é.

Cada vez que uma mulher diz que "tem sorte" porque o parceiro a "ajuda em casa" está simplesmente a perpetuar a construção social que assume que o universo doméstico não só é um domínio feminino, mas também uma obrigação que apenas a si diz respeito. Desresponsabilizando e infantilizando os homens quanto a isto. Já chega do discurso do “ele ajuda”, porque, na realidade, ele só faz a sua obrigação enquanto adulto funcional.

Bem sei que a partilha de responsabilidades na esfera doméstica e familiar tem vindo a aumentar, mas não deixa de ser ainda numa bolha – e, tantas vezes, essa bolha só é possível graças à exploração de outras mulheres que trabalham de forma precária, garantindo parte destes trabalhos.

Mostram as estatísticas que, num dia normal, as mulheres gastam cerca de três vezes mais tempo em trabalho doméstico e de prestação de cuidados não remunerados do que os homens. Números recentes do Gender Equality Index do EIGE mostravam que a disparidade de género ao nível dos usos do tempo em Portugal é uma das mais elevadas da UE. No Inquérito à Fecundidade 2021 (INE), lia-se que foram maioritariamente as mulheres que indicaram ser habitualmente responsáveis pelas tarefas domésticas, como lavar e cuidar da roupa (77,8%), preparar as refeições (65,0%) e limpeza da casa (59,3%).

A desigualdade de género é uma bola de neve na vida das mulheres

É à conta do trabalho não remunerado feminino que o mundo sobrevive e que os homens potenciam as suas carreiras e o seu crescimento económico. Contudo, continuamos a considerá-lo secundário – talvez precisamente porque sempre foi realizado pelas mulheres, que, a muitos convém, não devem ser incitadas a questionar o valor do seu esforço. Organismos como as Nações Unidas e a OCDE têm tentado fazê-lo, e dizem-nos que, caso fosse valorizado monetariamente, este trabalho poderia ter um impacto muito significativo no nosso PIB – estamos a falar de várias dezenas de milhões de euros.

Uma coisa é inegável, há um benefício direto dos homens com isto da sobrecarga doméstica feminina que não podemos mesmo continuar a menosprezar - e não estou a falar do cansaço físico e mental, que, embora real e pesado, mais dificilmente se traduz em números. Falo em termos económicos: ao cumprirem tais tarefas essenciais maioritariamente sozinhas, as mulheres potenciam aos homens as condições para se poderem dedicar à sua dimensão profissional. Contribuindo inequivocamente para o seu crescimento financeiro, em detrimento do nosso.

Dou por mim a questionar-me sobre isto amiúde: será que são os homens que ‘sustentaram’ as mulheres que ficaram noutros tempos exclusivamente dedicadas a cuidar da casa, filhos e idosos? Ou será que foram elas que sustentaram os homens, libertando-os destas responsabilidades e assegurando-lhes, assim, o tempo e disponibilidade mental para investirem nas suas carreiras? E de que forma continuamos nós a perpetuar esse ciclo nos dias de hoje, com as nossas duplas jornadas de trabalho, que dentro de casa estão ainda tão longe de serem igualitárias entre homens e mulheres?

A desigualdade de género é uma bola de neve na vida das mulheres. E ao que mencionei atrás, somam-se os tetos de vidro no mercado laboral, principalmente se forem mães ou estiverem em idade reprodutiva. Vemos isto tanto nas oportunidades de contratação, como na progressão de carreiras, acesso a cargos de poder e, é claro, na remuneração, inclusive quando se chega à reforma.

Dados recentes indicam que, em Portugal, as mulheres se aposentam mais tarde que os homens, porém recebem um valor mais baixo. Elas recebem em média €450 mensais, eles €746. Podemos justificar isto alegando que muitas eram de um tempo em que a mulher ficava em casa e tinha, portanto, menor carreira contributiva. O que é verdade. Mas depois diz-nos a CITE que, atualmente, as mulheres recebem, em média, menos 19,9% do que os homens. Portanto iremos ter o mesmo problema no futuro, mesmo que sejamos metade da força laboral deste país.

Menores oportunidades e menores rendimentos significam menor qualidade de vida em tantos aspetos. Menores opções de escolha, menor poder económico, menor capacidade de investimento, incluindo o no autocuidado. Portanto, também menos saúde, por exemplo. Menor autonomia, menor liberdade (basta pensarmos na quantidade de mulheres que se sujeitou, e ainda se sujeita, a vidas conjugais miseráveis porque não tem como garantir a sua subsistência), maior potencial de dependência financeira e, com isso, maior exposição à violência. Até quando?

Esta quarta-feira, 8 de março, assinala-se o Dia Internacional da Mulher. Em vez de oferecerem jantares fora ou flores às mulheres, ofereçam um pouco de reflexão sobre as múltiplas formas de injustiça e discriminação que ainda pautam as vidas no feminino. Começando pelo que se passa dentro de casa.