Bem sabemos que o tema do aborto é extremamente delicado e complexo, mas as mulheres e os seus direitos continuam a ser os alvos principais de quem tem a síndrome da moral única universal. É isto que está a acontecer nos EUA onde, uma fuga de informação – caso sem precedentes nos EU - revelou que o Supremo Tribunal tem preparado um documento da autoria do juiz Samuel Alito (nomeado por GW Bush) que a ser aprovado, será um revés na história americana dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, que remonta a 1973 com a decisão conhecida por Caso Roe vs. Wade, em que o mesmo tribunal reconheceu à jovem Jane Roe o direito constitucional ao aborto, apesar da decisão só ter chegado depois de esta ter entregue, depois do parto de uma gravidez não desejada, a filha para adoção.
Nos Estados Unidos como em Portugal, o tempo da justiça não costuma corresponder ao tempo das pessoas que a ela recorrem, como nos casos das violações e violência doméstica.
O Diretor-geral da Organização Mundial de Saúde já alertou que este retrocesso “não reduz o número de procedimentos. Esta restrição leva mulheres e jovens a recorrerem a procedimentos perigosos”.
Recordemos que o direito à interrupção voluntária da gravidez radica não apenas num direito de escolha, mas numa legítima preocupação coletiva em garantir a segurança e a vida das mulheres.
A decisão não está tomada, será votada até julho, mas o risco é real e existe. Em tempo de primárias americanas, a decisão política, histórica, enraizada na dignidade, na liberdade e no direito à saúde pode ser revertida. Em solidariedade com todas as mulheres norte-americanas, mas também com as mulheres em todo o mundo, precisamos de estar atentos e reforçar a vigilância para que nenhuma mulher seja forçada a viver uma gravidez contra a sua vontade ou consentimento, para que nenhuma mulher seja forçada a recorrer a clínicas clandestinas e inseguras. O Supremo Tribunal tem, atualmente, uma maioria de Juízes nomeados por Presidentes Republicanos (6 em 9), dos quais apenas 3 são mulheres.
Os tempos de mensagens com caracteres contados, de campanhas de desinformação e fake news, de populismos que promovem o vandalismo político e a crise dos sistemas democráticos, as guerras, conflitos e crises humanitárias na Ucrânia (3 meses), em Mianmar (15 meses), na Etiópia (18 meses) no Iémen (11 anos), na Siria (11 anos), só para referir algumas, os desafios à recuperação das economias no pós-Covid e as alterações climáticas, não nos podem diminuir a atenção à ação política transformadora e dos retrocessos em matéria de direitos humanos que chegam até nós quotidianamente.
As mulheres são mais de 50% da população mundial e os seus direitos estão constantemente a ser usados nas lutas políticas, num total desrespeito pelo direito internacional e compromissos nacionais em matéria de direitos humanos e igualdade de género. Exemplo disso, são os plasmados na Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável, onde no ODS 5 (Alcançar a Igualdade de Género e Empoderar todas as meninas e mulheres) podemos ler: acabar com todas as formas de discriminação contra todas as meninas e mulheres, em todo o mundo; garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão, incluindo na vida política, económica e pública; assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e aos direitos reprodutivos; adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de género e o empoderamento de todas as meninas e mulheres em todo o mundo.
A existência de legislação que permite o aborto por decisão da mulher não empurra as mulheres para a IVG, apenas permite que o façam em condições de saúde e dignidade. As mulheres não precisam de quem decida por elas… precisam sim de políticas públicas e abordagens que para lá dos espartilhos ideológicos apoiem as suas decisões em respeito pela diversidade de ser mulher. Nada disto significa que toda e qualquer solução juridicamente alcançada não tenha de ponderar os diferentes valores em confronto, como considera a lei portuguesa, nomeadamente os direitos do nascituro, sendo evidente que tais direitos e valores que formam os direitos fundamentais têm de ser acautelados.
Tudo ponderado, não deixará de ser manifestamente indigno que em pleno Século XXI os EUA possam voltar a empurrar as mulheres para a sujeição a procedimentos ilegais, marcados muitas vezes pela falta de condições, pela insegurança e clandestinidade, com sofrimento para si e para o nascituro e possíveis consequências, por vezes irreversíveis, para a sua saúde reprodutiva.
Num mundo que continua a ser profundamente desigual, estejamos atentas para travar eventuais e semelhantes ímpetos na Europa. Só assim se cumprirá o mantra das Nações Unidas “não deixar ninguém para trás” e como repetidas vezes o Secretário-Geral das Nações Unidas António Guterres afirmou, “a saúde e os direitos sexuais reprodutivos são essenciais para alcançar a igualdade para mulheres e meninas em todo o mundo”.