Opinião

Tempos duros

A criação de cenários maniqueístas, com o lançar de anátemas sobre específicos sectores da população, como o agora feito a partir da Câmara Municipal do Porto, pode entusiasmar os indefetíveis, mas num contexto mais global, prejudica, mais do que auxilia a justa causa do povo ucraniano

Um concerto pela Paz desencadeou uma guerra na e a partir da Câmara do Porto. Depois de o executivo municipal ter proibido, por maioria, a realização da iniciativa no Teatro Municipal Rivoli, como sempre sucedeu ao longo dos anos, os promotores, o Conselho Português para a Paz e a Cooperação, transferiram-na para a Praça D. João I, frente ao teatro.

Numa atitude inusitada, Rui Moreira decide publicar no Facebook um conjunto de fotografias dos participantes na ação do CPPC acompanhadas de um comentário: “Reparem: nem uma bandeira ucraniana. Nem uma crítica a Putin. O PCP e os seus satélites no branqueamento”. De seguida, o atual chefe de gabinete de Moreira, Vasco Ribeiro, professor catedrático na área da comunicação social, publica na mesma plataforma fotos similares da “manifestação comunista ‘pela paz’” e pergunta quantas bandeiras da Ucrânia lá estavam. “Lamentável e vergonhoso”, conclui.

Por fim, entra em cena, também no Facebook, o durante vários anos estratega de Rui Moreira, seu anterior chefe de gabinete, Nuno Santos. “Vergonhoso é este post”, começa por dizer. Logo de seguida evoca o histórico da autarquia na relação com o CPPC para dizer que “a Câmara liderada pelo atual presidente apoiou com dinheiro e com a cedência do Rivoli esta iniciativa durante anos, quando a organização tinha já as opiniões que tem”. Por isso, Nuno Santos pergunta “porque razão a câmara, depois de decidir o apoio o decide retirar com base em delito de opinião”.

Nuno Santos apresenta-se como “anticomunista”. Mas não fascista, esclarece. Isto depois de sublinhar que a CMP há muito decidiu “ceder sempre os seus equipamentos aos partidos políticos e organizações políticas para os seus eventos. A lei obriga a que o faça sempre com o mesmo critério, não podendo haver discriminação”.

Em resposta, o doutorado Vasco Ribeiro, para lá de justificar a decisão tomada, desce para o ataque pessoal. Acusa Nuno Santos de, por já não trabalhar na CMP, não saber fazer mais nada “se não destilar veneno e ódio contra tudo e contra tudo o que mexe". "És um tipo doente que não tem vida própria."

A decência e o bom gosto levaram-me a não procurar saber se houve réplicas ou contrarréplicas. Para lá da substância - saber se no concreto houve ou não referências à Ucrânia nas diferentes intervenções, se foi ou não condenada a invasão desencadeada pela Rússia, ou até discutir a publicação pelo presidente de uma autarquia, de fotografias de participantes numa manifestação para os tentar identificar, conotar e apoucar - importa também a intolerância. Uma não anula a outra. E uma não pode ser desligada da outra.

Socorro-me do último romance de Mario Vargas Llosa como título desta crónica para, de alguma forma, evidenciar a perigosidade de um tempo de ânimos demasiado exaltados, bloqueadores de qualquer tipo de discussão racional.

Tentar fazer esse debate não significa incorporar a estratégia argumentativa de Vladimir Putin para justificar uma invasão injustificável. Não basta declararmo-nos do lado do bem ou do lado certo da História para que, como por artes mágicas, os problemas se resolvam.

A análise da realidade não pode transformar-se numa impossibilidade. Há, justificadamente, muita emoção à solta, em alguns casos transformada numa espécie de combate ideológico que exclui qualquer possibilidade de discussão séria e não contaminada pelo efeito devastador das certezas absolutas. Logo, inquestionáveis.

Para que serve a História? Esta a questão colocada pela nova professora da disciplina no episódio da série catalã “Merli" transmitido no passado sábado. Passa na RTP 2 e é uma das mais didáticas e bem humoradas séries em exibição neste momento. Quando um aluno responde servir “para perceber de onde vimos”, a jovem professora concorda e acrescenta que serve “também para se entender o que se passa agora. Quem não conhece a História está condenado a repeti-la. A História está cheia de erros. O que se passou há séculos pode transportar luz para o presente”.

As atrocidades cometidas pela Rússia desencadearam uma imensa cólera face à brutalidade da invasão de um país e ao martírio do seu povo. Se existe uma forma de acabar com esta agressão, não o será, com toda a certeza, através de uma linguagem provocadora e arruaceira, muito ao gosto do presidente dos EUA, já censurado e corrigido em várias latitudes.

Muito menos o será com recurso ao depósito de toneladas de cimento sobre o passado, de modo a tornar invisível o mais leve resquício de discussão sobre a complexidade da conjuntura vivida naquela região da Europa.

A criação de cenários maniqueístas, com o lançar de anátemas sobre específicos sectores da população, como o agora feito a partir da Câmara Municipal do Porto, cria uma dicotomia simplista que pode dar muitos “likes” nas redes sociais, pode entusiasmar os indefetíveis, mas num contexto mais global, prejudica, mais do que auxilia a justa causa do povo ucraniano.

Compreender e, acrescento eu, analisar, não é desculpar, como escreve Natacha Polony na última edição da revista francesa Marianne. É, quando muito, tentar construir caminhos para uma solução cujo único desfecho só pode ser a paz. Além de trágicos, estes, como diria Charles Dickens, são tempos difíceis.