Os efeitos da crise política no contexto da pandemia e dos desafios globais ainda não podem ser plenamente revelados. Os escândalos nas Forças Armadas (FA), em outras instituições e no futebol são graves para a imagem e credibilidade do País. Mas funcionam como manobra de diversão para os graves problemas que o País enfrenta numa fase crítica do nosso destino colectivo.
Além das variáveis conhecidas existe uma crescente desinformação utilizando a dissimulação e o equívoco com sofisma, que geram contradições insanáveis, desconfiança e tensões. Fica a percepção que se pretende ocultar a realidade da governação. E sem transparência não há integridade, sem integridade não há verdade na política. Curiosamente, o título da obra “Descompasso” de Onofre Santos sobre a percepção da verdade é uma expressão do agrado do ministro da Defesa (MDN).
Neste âmbito, o MDN não agiu com lucidez ao não comunicar ao Presidente da República (PR) e ao primeiro-ministro (PM), quando tomou conhecimento da denúncia do envolvimento de militares em actos ilícitos criminais na missão da ONU na República Centro-Africana (RCA), que deram origem à “operação Miríade” da Polícia Judiciária.
Os titulares de órgãos de soberania têm obrigação de saber preservar o segredo de justiça não prejudicando assim os fins daquele instituto jurídico. A separação de poderes não significa, portanto, que sejam mantidos na absoluta ignorância as denúncias de má conduta imputáveis a militares portugueses que atingem a imagem de Portugal e das suas FA. E tomar conhecimento não significa que tenha de ser “objecto de apreciação” como divagou o PR, que sabe usar a informação classificada que recebe dos nossos serviços de informações!
O MDN terá comunicado à ONU, mas foi omitida ao PR, que é também Comandante Supremo das Forças Armadas, sendo certo que o Almirante Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas (CEMGFA) também estava informado dos factos, cuja dimensão não devia ser desvalorizada, pela sua enorme experiência.
Mas o argumento do segredo de justiça desapareceu em relação à ONU, a quem é obrigatória a informação ainda que a dimensão dos factos seja desprezível para informar o Chefe de Estado. Inaceitável mistificação!
Contudo, a ONU já assumiu publicamente que só tomou conhecimento pela imprensa, aceitando o Chefe de Estado não ter sido informado face a “pareceres jurídicos”, que afinal o MDN desmentiu. Ao considerar “natural” o anormal, o PR tentou dissimular o incómodo de não ter sido informado. Mais uma vez alguém não fala verdade!
Claro que a memória (mesmo a selectiva) é sempre mais forte que o esquecimento e, por isso, vale a pena decifrar textos das memórias de um político português carismático, onde desabridamente se refere à fábula do escorpião.
Neste quadro, parece evidente não ser possível, nem sequer racional, dissociar o direito (consagrado na Lei) de o PR ser informado pelo Governo e não pela Comunicação Social. E não respeitar essa prerrogativa, faz correr o risco de alienar o prestígio de quem tem uma posição institucional de controlo dos equilíbrios do sistema democrático.
Importa ainda acrescentar que não devia ser escamoteado ou relativizado o impacto dos escândalos do sector da defesa na imagem das FA e do País. Porém, o PR, o MNE, o MDN e o CEMGFA teimam em minimizar aquilo que é uma evidência ao nível interno e externo. Incompreensível desafio à racionalidade!
Com efeito, a gravidade assume ainda maior dimensão, porque em certa medida os diversos casos são o reflexo dos problemas multidimensionais da sociedade. E também do processo contínuo de degradação das FA, desde a intervenção da troika, que afecta a prontidão e a condição militar - essência da organização -, pela inexistência de uma política de defesa nacional credível e ajustada aos interesses nacionais.
A actuação do MDN – nunca esteve “confortável” no cargo- fica marcada pela falta de visão integrada, governamentalização da Instituição militar com medidas precipitadas e com decisões de arrogância e prepotência que são disruptivas na sua identidade e coesão. Ou seja, tem sido delimitada pela inépcia!
Além disso, é justamente pelo facto das FA contribuírem para o prestígio de Portugal e para a afirmação e credibilidade do Estado, que o envolvimento de militares em actividades ilícitas, numa missão no estrangeiro, tem inevitáveis consequências com danos reputacionais. A honra também se avalia pela capacidade de assumir os momentos de vergonha.
Ainda não foi enfatizado, que os crimes em investigação acontecem num momento de extrema tensão entre as autoridades de Bangui e a missão da ONU, que a presença Russa e os interesses económicos da China vieram agravar. A pressão, em curso, pode mesmo levar à saída do contingente português da RCA, como já aconteceu com outros envolvidos em escândalos (francês, gabonês e congolês). E ninguém pode evocar desconhecimento do “código de conduta e disciplina” daquela missão.
Não deixa também de ser preocupante o facto de só após a denúncia dos crimes tenham sido reforçadas as medidas de segurança, quando já tinha ficado evidente o laxismo no caso de Tancos. E o MDN devia ser questionado sobre as medidas que foram tomadas depois de um antigo secretário-geral dos serviços de informações, porventura o que terá maior experiência, ter considerado “especialmente preocupante” o risco de infiltração de grupos de actividade criminal em “estruturas estatais” numa audição sobre o caso de Tancos.
E não foi devidamente explicado por que não foram adoptadas medidas preventivas para controlar de forma mais competente e proactiva a utilização de armamento, das infraestruturas e dos meios logísticos. E, em especial, os militares e respectivas cargas quando desembarcam em Portugal.
Convém ainda sublinhar que não é preciso ser o “Nostradamus” (expressão do MDN no Parlamento que resvalou para a insolência), para ter a percepção que a suspeita de crime cometido por militares numa missão da ONU tem sempre relevância para o dever de informar o PR, em tempo, e pelo canal adequado.
Como corolário é evidente o “descompasso” entre os titulares dos órgãos de soberania que, no entanto, se vai acentuando, porque o Chefe de Estado é demasiado condescendente na forma como acrescenta o caricato e a impunidade ao exercício político degradado com base no improviso e na ficção. O País desaprova a sobranceria e reclama reposição da autoridade da razão para que o acaso não seja a norma.