É inaceitável acrescentar uma crise política à complexidade dos desafios globais que enfrentamos, cujos efeitos não foram plenamente revelados. Os portugueses têm, contudo, assistido incrédulos à subversão do poder com falta de transparência, ao desprestígio das instituições e à soberba de não dar explicações recusando as responsabilidades na governação. E ao fiasco da geringonça num jogo de passa culpas deplorável!
Neste contexto, era aguardada com expectativa a entrevista do primeiro-ministro (PM) desaparecido desde a rejeição do Orçamento. A agenda partidária e o debate animado dos cenários do pós-eleitoral foram providenciais. A “brilhante” entrevista acabou, porém, por não ser devidamente escrutinada, tendo em conta a envolvência da operação Miríade, que veio agitar ainda mais a actual situação política em constante deterioração com o PM e o ministro da Defesa muito fragilizados.
Estes factos desviam a atenção do debate sério sobre as soluções para os graves problemas do País com governos sem agenda reformista e sem pensamento político-estratégico. Não se discute a essência, mas apenas a emergência conjuntural.
A entrevista dada na residência oficial, como se o PM estivesse no Largo do Rato, foi a confirmação da sua idiossincrasia. Boa nota artística por conseguir mistificar a realidade da sua governação e péssima nota técnica por ser vazia de conteúdo nas ideias para o País que continua à deriva e sem rumo mesmo com ventos e mar muito agitado. E mais será revelado!
Assistimos a mais um momento inusitado de campanha eleitoral com um pedido de cheque em branco. A maioria absoluta é o seu principal desígnio! Para isso, enquanto põe a esquerda em sentido pisca o olho à direita a quem já tinha fechado a porta sem “maçaneta”.
Curiosamente, em poucos dias, desapareceu a convicção e sobranceria ao “muro” edificado com o maior partido da oposição. O PM, com a sua experiência, devia saber que bloquear o diálogo - evidencia dogmatismo – é exactamente o contrário do exercício complexo da governação que visa equacionar as opções bem informadas, definir políticas públicas, gerir as expectativas e liderar a mediação dos conflitos.
A entrevista foi ainda uma espécie de chantagem emocional entre a bazuca e os “muros”, existindo um mistério que se adensa relacionado com a ida ao “pote” dos fundos. O segredo pode ser do PM, mas o ajuste de contas será feito.
Não deixa também de ser interessante fazer a análise da metáfora da porta em que muitas vezes a fechadura emperra, a chave não é adequada, as ferramentas não ajudam e o ambiente é sufocante. O PM deixou de estar predestinado para abrir portas, “transpondo fechaduras com uma única e frágil chave”!
Com efeito, não quis assumir que já não há estrada para andar. E devia ter presente o poema por si citado: “o que lá vai já deu o que tinha a dar” e “quem ganhou, ganhou e usou-se disso”. E os portugueses nunca esquecerão que “enquanto alguns fazem figura, outros sucumbem à batota” e, por isso, não vai chegar onde queria nem gozará bem a sua rota.
O PM confirmou a habilidade política, utilizando a demagogia num discurso em que veste a “pele de cordeiro” e sabe esconder a arrogância quando quer. Mas foi incapaz de disfarçar que é pernóstico. E a sua retórica astuta, contudo, não conseguiu dissimular as contradições insanáveis entre a propaganda e a acção governativa desgovernada. O impacto da pandemia tem dissimulado a precipitação, a irresponsabilidade e a impunidade.
São tempos de muita inquietação e incerteza, que vão exigir enquadramento mobilizador, competência e lideranças responsáveis com capacidade de negociação. No desafio à governabilidade não há vitórias garantidas e os cidadãos não são idiotas úteis. E como é sabido, mais cedo do que tarde, a realidade sobrepõe-se à fantasia!
Capitão-de-fragata (Reforma)