O movimento #metoo chegou a Portugal.
Importa, antes de lhe dar as boas-vindas e de dizer que vem atrasado, olhar para ele e fazer aquele exercício: “how it started, how it´s going”. É um exercício que nem sempre corre bem. Já agora, porque é preciso usar nomes ingleses para tudo o que tem a ver com assédio? É certamente possível traduzir essas palavras e será uma forma de resistirmos a uma colonização cultural enquanto lutamos por direitos fundamentais.
Como começou:
#metoo é uma hashtag da autoria da ativista Tarana Burke, defensora dos direitos das jovens negras nos Estados Unidos. Essa hashtag dá nome ao movimento - Tarana costuma chamar a atenção para a diferença entre movimento e “momento” - que defendeu a necessidade de apoio às vítimas de assédio sexual.
Tarana Burke terá ouvido o relato de uma menina que sofria abusos sexuais por parte de um familiar, facto que terá marcado a decisão de partilhar publicamente a sua experiência pessoal; também tinha sido vítima de abusos sexuais. Apenas conseguiu fazê-lo alguns anos depois, em 2006, ano em que lançou a campanha “Me Too” na plataforma “MySpace”. Esta foi a origem do movimento.
Defendia mulheres que não eram apenas vítimas de assédio sexual, eram igualmente vítimas de exploração laboral, discriminação racial e mulheres pobres.
Como está:
A explosão do movimento aconteceu em Outubro 2017 a partir de um tweet da atriz, Alyssa Milano, que dizia o seguinte: “If you´ve been sexually haressed or assaulted write ´me too` as reply to this tweet.”. Este tweet foi escrito no contexto das denúncias ao produtor de Hollywood Harvey Weinstein. As respostas e reações chegaram, de forma massiva, e outras atrizes confirmaram ter sido vítimas de assédio sexual. Nomes que se julgariam intocáveis – como Kevin Spacey ou Louis C. K. - foram visados neste processo, que se alargou ao desporto, jornalismo, artes, política e que chegou a incluir homens como denunciadores ou vítimas de assédio ou de abusos sexuais.
Houve consequências: condenações a prisão efetiva, afastamento de cargos e a destruição de carreiras.
As vítimas de assédio ou de violência sexual são sobretudo mulheres, é um facto. Mas nem todas as mulheres estão no mesmo patamar de vulnerabilidade ou fragilidade e, aqui, não me refiro a características de personalidade mas sim a condições sócio-económicas ou de classe. Eis a grande diferença. Qualquer luta que a esqueça vai falhar em algum momento e, quando digo falhar, refiro-me a não resolver as causas do problema e de assim permitir a sua continuidade.
O domínio patriarcal arrasta-se há anos e conhece agora uma pirueta. Já vem tarde. Só que a pirueta não chega a todas as mulheres. Enquanto o mundo assistiu, em Janeiro de 2018, a uma noite de Globos de Ouros em que algumas das mulheres mais poderosas do mundo vestiam vestidos pretos em solidariedade para com as vítimas do movimento, nada mudou para a maior parte das mulheres ou para a maior parte das vítimas. Supervisores de fábricas continuaram a assediar impunemente trabalhadoras que dependem da sua retribuição para viver e se olharmos para os países onde existe miséria extrema ou guerras chegamos ao horror.
Vamos então ao horror:
No norte da Etiópia, no Tigray, neste momento, persiste um conflito que tem vindo a vitimar centenas de mulheres e de crianças: violações, maus tratos e agressões com contornos de crueldade difíceis de equacionar. Esta crise dura há seis meses. Em Março deste ano a “Georgetown University Center for Security Studies” publicou um relatório com o título “A violação como arma de guerra no Tigray”. As condições em que estas mulheres e estas crianças se encontram foram caracterizadas pela Amnistia Internacional como crime contra a humanidade. À estação de televisão Al Jazeera disse uma dessas mulheres: “digam ao mundo que estão a matar-nos”.
Porque é importante falar disto?
Enquanto o “Me Too” dos Estados Unidos causar mais comoção que a violação massiva de mulheres na Etiópia não sairemos de onde estamos. Não se trata apenas de uma questão básica de sentido de justiça, tem mesmo a ver com a eficácia da luta. Se esta for indiferente às desigualdades entre as mulheres nunca terá o foco na origem do problema.
O domínio masculino poderá ter começado, há milhares de anos, por questões predominantemente biológicas mas foram, e são, claramente as condicionantes económica, social e cultural que o perpetuaram. Lutar contra o patriarcado implica lutar contra a manutenção destas condicionantes e sobretudo da primeira. Nada de novo aqui. A questão é que a luta contra a exploração das mulheres pelos homens não pode deslocar-se da luta contra as desigualdades que permitem que sejam sobretudo os homens a ocupar posições que permitem assediar, chantagear e até violar mulheres em situações subalternas.
Vamos lá ver: as atrizes de Hollywood que protagonizaram o movimento não são as grandes vítimas do problema transversal e global que persiste. Não se trata aqui de desvalorizar as situações de assédio porque passaram. Pelo contrário: trata-se de alargar a luta, e a libertação, a todas as mulheres e sobretudo às que mais precisam.
O movimento das mulheres que denunciam assédio sexual chegou a Portugal.
A este propósito quero falar-vos de uma flor selvagem que nasce na Serra do Caldeirão em sítios onde não vai ninguém. Vi muito poucas. É igual a uma rosa mas não é rosa nenhuma. É preciso chegar muito perto para perceber isso. As pétalas e o caule têm outra textura e não tem cheiro. Chamam-lhe rosa albardeira e, na serra, esse nome é sinónimo de embuste. É uma das expressões mais usadas para criticar as mulheres que tentam parecer uma coisa diferente da que são. Constitui uma crítica afectuosa. Há lá piores. As pessoas da serra são duras.
Falo da rosa albardeira para dizer que não somos estadunidenses. Somos portuguesas e o que nos rodeia não tem assim tanto a ver com o que se passa nos Estados Unidos. Nem é preciso uma grande aproximação para reparar. A chegada do movimento a Portugal deve ser uma oportunidade de o reformular, de rejeitar aquilo que não nos serve e de recuperar a sua vocação política. Não ficar pelas redes sociais ou pelo ataque a homens poderosos e nele incluir as mulheres mais desprotegidas e homens igualmente desprotegidos, pessoas portadoras de deficiência – as vítimas. Serão sobretudo as mulheres mais desprotegidas a engrossar a fileiras das vítimas mas não a esgotam.
Recordar que a própria Tarana Burke, não desvalorizando a importância que teve a explosão do movimento em 2017, teceu fortes críticas ao rumo que ele tomou: um excesso de atenção relativamente aos casos mais mediáticos e à perseguição de homens. Falou também na necessidade de retomar o foco na mudança social: atacar o sistema que mantém as mulheres a trabalhar nos sectores laborais desfavorecidos, muitas delas racializadas, sendo as principais vítimas de assédio e violência sexual. Sobretudo chamou a atenção para a importância que passar do “me/eu” para o “us/todas”, o colectivo das mulheres, ou seja estender a luta às pessoas comuns e não apenas às mulheres brancas e economicamente privilegiadas. Interveio para que se passasse ao apoio às vítimas através da criação de programas e de centros de acolhimento. Este apoio ultrapassou as manifestações públicas de solidariedade e procurou fazer a diferença na vida de mulheres que a têm destruída.
Atenção, as críticas que publicamente lançou ao movimento não a levaram a desassociar-se dele e esse é um aspecto importante. O “Me Too” foi fundamental. Tarana Burke marcou presença na noite dos Globos de Ouro, em janeiro de 2018, e também levou um vestido preto.
É verdade que graças ao movimento foram criadas novas leis, códigos de conduta nas empresas, milhares de mulheres tiveram a coragem de contar as suas histórias e foram criadas associações de defesa das vítimas com meios para efetivamente as defender. O balanço foi positivo.
E agora?
A maior parte das denúncias é feita precisamente nas redes sociais. Estas são uma boa plataforma para comunicar e serão também para denunciar casos de assédio sexual, maus tratos, violência doméstica. Mas não podem ser ignorados os perigos de seguir o que poderia ser chamado “procedimento” a que se espera que a comunidade dê cumprimento, no espaço público, depois destas denúncias: solidariedade com a vítima, a confiança na sua denúncia e uma mitigação do princípio da presunção da inocência do agressor ou assediador. Há aqui um regime de exceção ao comportamento que é exigido à comunidade no decurso de um processo judicial. É certo que os processos judiciais não têm conseguido fazer justiça nestes casos.
Este procedimento, com as devidas adaptações, pode ser comparado a qualquer outro na lógica de se traduzir num modus operandi. Dou como exemplo uma sala de atendimento preparada para receber muitas pessoas. Há normalmente um sistema de senhas e quem chega deve aguardar pelo aparecimento do número correspondente ao da sua senha no ecrã ou pela audição desse número. Vamos então imaginar - não é preciso imaginar, já terá acontecido a quase todos – que se entra numa dessas salas e que não há ninguém à espera. Será lógico que não se tire a senha e que se vá direto ao balcão atendimento. Mas dá-se o caso de quem está a fazer o atendimento insistir num recuo em direção à máquina das senhas e no cumprimento do procedimento como se o sítio em causa estivesse cheio. É estranho. Basicamente cumpre-se o procedimento mesmo quando ele não faz sentido. Já me aconteceu numa padaria. Sem problema; tira-se a senha e faz-se de conta.
Aqui também se instituiu um procedimento. Ainda bem. É talvez a única forma de combater anos de mais do mesmo. Mas aceitar um procedimento não significa segui-lo em qualquer circunstância. E há também que pensar se o jornalismo deve seguir o procedimento. Seria uma longa conversa. Será uma bom tema de reflexão para os jornalistas portugueses.
É que este procedimento conta com a integridade da vítima. E se assim não for? A resposta prevista é: arrisca-se. Tudo bem, concordo. Mas e se alguém tiver o efetivo conhecimento de que quem que se diz vítima não é? Deve calar-se a bem do movimento ou deve falar? Inclino-me para a obrigatoriedade de se falar. Não será uma injustiça que vai salvar o movimento ou ajudar quem quer que seja.
E estas coisas acontecem.
Se admitimos esta forma de justiça – imediata e sem a mediação de profissionais – a responsabilidade de todos os que nele participam é acrescida. Essa responsabilidade deve passar pela admissibilidade de erros, a de que algo correu mal, se tal vier a acontecer.
E em relação às causas originais do assédio ou seja em relação às suas raízes económicas, o que faz este procedimento? Nada. É importante alargar o âmbito deste “Me Too” sob pena de não passar de um movimento liberal.
A própria luta feminista corre este risco. Ainda este ano, no dia internacional da mulher, a diretora do Diário de Notícias, Rosália Amorim, falava de mulheres com “M” (grande) e enaltecia as fortes em detrimento das fracas das quais, no seu entender, não rezaria a história. Há aqui vários equívocos; o da origem do dia da mulher – associado à luta de trabalhadoras numa fábrica têxtil – e o da diferenciação de umas em relação à outras conforme consigam ou não vingar na vida. Este elogio do mérito é totalmente alheio à luta feminista. É outra coisa. Terá o seu lugar para quem tenha o culto do mérito. Mas o dia da mulher é sobre a luta das mulheres e essa luta é sobretudo pelos direitos das que mais precisam.
Um “Me Too” não deverá ser apenas um somatório de denúncias individuais que visam determinados homens mas um processo verdadeiramente colectivo, pensado para incluir todas as vítimas e focado em atacar as causas do domínio do patriarcado. Estas causas são sócio-económicas e culturais. Enquanto persistirem, a libertação das vítimas será sectorial e poderá constituir uma nova forma de privilégio. Na verdade, atacar unicamente os assediadores e não estas causas é apenas uma inversão do poder: a vítima passa à posição de domínio, passa a ocupar um papel em que o agressor vê reduzidos os habituais direitos e garantias de defesa e a sua vida pode traduzir-se numa entrada no mundo dos infernos.
Se é justo? É um tema complexo. Pode aceitar-se que esta fase seja necessária para atingir a desejável em que não existam agressores/abusadores/assediadores que se julguem fora do alcance de uma forma qualquer de justiça mas deve existir a consciência de que se está a pisar o risco nas garantias de defesa dos visados. Num julgamento antecipado em praça pública, e ao ritmo alucinantes das redes sociais, não há prescrições mas também não há reflexões. É uma bomba como as dos filmes americanos.
Mas digo sobretudo que isto é muito pouco. Trata-se de um circuito fechado e a operar ao nível da classe média e da classe média alta que nada vai fazer para mudar a vida da maioria das vítimas ou seja das que pertencem a classes desfavorecidas. Enquanto existir pobreza, e se está para durar, serão sempre os pobres os que estão na base da pirâmide da cadeia alimentar, as presas dos restantes.
No “Me Too” fala-se de sexo mas sexo não é a parte fundamental. Alguém disse que tudo no mundo é sobre sexo, excepto sexo, e que sexo é sobre poder. Aqui é certamente assim. Estamos sempre a falar de poder e de humilhação, de um patriarcado que deve ser destronado e da humilhação a que tem submetido as mulheres. A solução para este problema não deverá ser apenas uma vingança, a da tomada do poder e a devolução da humilhação. Nunca assisti a uma humilhação como solução de um problema mas tenho-a visto ser causa de muitos.
Não deve tratar-se apenas um ajuste de contas por parte de quem está em circunstâncias de as apresentar. Que se comecem a procurar as soluções. Séculos e séculos de patriarcado não nos deram soluções, acredito que possa ter chegado a nossa vez. É importante então que façamos melhor do que obter o poder e devolver a humilhação.
Ser uma vítima, ainda que protegida e com a solidariedade de todos, é algo de que ninguém se deve envergonhar mas também não deve ser uma situação glorificada. Certamente não constitui uma verdadeira fonte de poder. O objectivo é que não existam vítimas e que o poder assente na justiça e na igualdade. Estamos num processo, esta não é a fase final.
O #metoo não é o destino, é a próxima estação e já merecia outro nome.